terça-feira, 28 de abril de 2020

Capitulo 4

Quando entrei na faculdade sempre imaginei como seria a minha vida e quais as sensações vividas enquanto profissional. Será que era como nos filmes? Correr de um lado para o outro, aquela azafama em que não teríamos tempo de parar, viveríamos apenas e só para o trabalho? Algo no meu interior dizia que isso era apenas uma pequena parte das vivências enquanto enfermeira e que existia algo bem mais transcendente Bem…não diria que o meu coração estava completamente enganado mas até ao momento, não estava certo. Nem lá perto. Quer dizer…nem tudo era assim tão mau e justificava os maus momentos ao facto de ainda ser estudante. Sentia-me exausta…O meu estágio no serviço de neurologia tinha começado há três semanas e faltava apenas uma para terminar. Eramos um grupo de três alunos com um enfermeiro responsável. A azáfama era muita e tinha dias em que me sentia a super enfermeira que sabia tudo e o dia corria tão bem e noutros…corria tudo tão mal que nem as coisas básica adivinhava. Não sei o que se passa comigo, se é o cansaço ou que possa ser mas sinto-me a desanimar como as folhas que caem das árvores. 

Se sinto isto enquanto estudante, quando for enfermeira será igual? Sei que é uma das profissões mais desgastantes e com das taxas mais altas de síndrome de Burnout mas também é das mais belas profissões do mundo, como uma rosa florida e com seu cheiro incrível. Só que até à data só me deparo com os seus espinhos. 

Caminhava vagarosamente pelos corredores do hospital, depois de um turno de 12 horas. Estávamos a preparar para a passagem de turno, quando fui interpelada pela minha orientadora. 

- Hei, Clara pode chegar aqui? 

- Claro! – Prontifiquei-me a segui-la até ao gabinete de enfermagem. 

- Amanhã os nossos utentes serão diferentes porque vamos trabalhar na ala dos quartos impares. No entanto, quero retificar alguns pormenores. Reparei que a Clara estava com dificuldades na compreensão do caso clinico da D. Adelina. 

- Na utente que foi submetida à prótese total da anca? 

- Exato. A utente foi submetida à cirurgia há três meses e, apesar das suas dificuldades na marcha, o verdadeiro problema dela não é esse. Preciso que pense de uma forma holística e com pensamento critico tente entender quais serão as principais razões e diagnósticos da utente e que possam estar a impossibilitar de realizar treino de marcha. 

- Bem…- Mentalmente tentei ordenar as minhas ideias e pensar de forma clara. Eu sou capaz disso – Podemos ir pelos seus antecedentes pessoais que… - fui interrompida. 

- Quero que pense bem e reúna-me a sua opinião clinica num texto organizado, até amanha. pode ser? 

- Para amanhã? – sentia a minha garganta a queimar. Depois do dia de amanhã tinha o exame final, não podia queimar mais tempo pois precisava de estudar para a prova. 

- Sim. Eu sei que é capaz…Qualquer duvida tem o meu e-mail – senti a ficar sem chão. Quando falo que apanho os espinhos das rosas, era disto que falava. Olhei para o relógio. Eram quase oito da noite e ainda faltava meia hora para terminar o turno. Com sorte, estaria em casa por volta das nove horas da noite e entre jantar, tomar banho e preparar os estudos, talvez à meia-noite estaria a preparar este caso clinico. Ah! Sem esquecer que tinha de estudar para a prova final e que amanhã tenho mais um dia de estágio. Abanei a cabeça. Eu não me sento nada preparada para a minha profissão. 


Cheguei ao quarto depois de buscar o meu terceiro café desde que cheguei a casa. Eram onze horas da noite e dediquei uma hora de estudo, até ao momento, para a realização da prova. Estava com receio que o estudo de caso me fizesse perder o tempo e não conseguisse adiantar matéria. Okay…vamos lá. Reuni toda a informação clinica e fiz a avaliação inicial. Tinha tudo escrito por ordem. Estudei umas matérias a nível neurológico que pudesse justificar os atuais sintomas. Tinha tudo na mão mas porque é que eu não conseguia chegar a uma conclusão? Respirei fundo…tentei lembrar-me das passagens de turno e da informação dada pelos enfermeiros, anotei tudo direito. Mas…nada. Não conseguia pensar em mais nada e comecei a sentir os efeitos do excesso da cafeína. O meu coração batia fortemente. A minha cabeça estava a pesar e as pestanas já davam sinais de quererem fechar. Eram mais do que horas de dormir mas eu tenho um caso clinico para terminar para amanhã de manhã. Comecei a sentir-me exasperada e a dar sinais do cansaço acumulado. Num ato irrefletido, mando com o meu caderno contra a parede em sinal de toda a minha frustração. Odeio sentir isto. Que estou a falhar e não sou capaz de dar respostas que teriam de ser básicas. Daqui a uns meses vou ser enfermeira e não me sinto capaz de decifrar um caso clinico básico! Que raio de profissional serei eu? Uma idiota! Soltei um pequeno grito de lamúria. 

- está tudo bem? – uma voz receosa provinha do lado da porta. 

- O que foi? – ripostei ainda sem me aperceber de quem estava à porta, perante o desespero que sentia. Olhei de soslaio e bufei. 

- Acabaste de mandar, o quer que tenha sido, algo contra a parede e que por sinal é a mesma que a minha e que está encostada à minha cama. Vim só ver se está tudo bem. 

- Está tudo bem, não vês? Desculpa se incomodei! – ironizei. O Rafael ignorou o meu estado de espirito exaltado e entrou no quarto, fechando a porta. 

- Não dei permissão de entrares…- murmurei 

- Engraçado, tu também entras pelo meu quarto sem pedires licença – gracejou. 

- O que estás aqui a fazer? – Perguntei mais calma e a tentar esconder os meus tumultos. Só me faltava que ele percebesse as minhas fragilidades. 

- A tua prova final é daqui a dois dias, certo? – Ele ignorou a minha pergunta. Ao invés disso, chegou perto da minha secretária, sentando-se na borda da mesma. 

- Sim… 

- Estás com algum problema na matéria? – Ergui o sobrolho. De onde tinha vindo tanto interesse? 

- O problema não é a matéria. Eu estou preparada para o exame – menti. 

- Hum…estou a ver. Suponho que o problema de teres mandado algo para a parede se chama… - ele levanta-se e vai até junto da parede, do sitio onde se encontrava o meu caderno. Apanhou-o e começou a ler – neurologia? 

- Estou apenas com um pequeno bloqueio. 

- E para desbloqueares o teu problema, mandaste-o contra a parede? – gracejou. O momento não era para rir mas, lá no fundo, deixei escapar um sorriso tímido. Que raio! Porque estava com vontade de rir se, na verdade, só queria chorar? 

- Sim, mandei. Dizem que resulta! 

- Vou experimentar essa tática – refletiu – o teu problema chama-se Dona Adelina? 

- Desculpa? – ripostei de imediato. Com que raio ele sabia? 

- Antes que me insultes, estavas a falar dos teus casos clínicos ao telefone. E estavas na cozinha enquanto preparavas mais uma chávena de café. Eu estava na sala e ouvi. Não foi com intenção mas encontravas-te demasiado envolta da situação da tua utente que até os peixes do rio eram capazes de ouvir… - Cretino. Abanei a cabeça não sendo capaz de acreditar no que ele me dizia. Mas desta vez a culpa é minha. Enquanto esperava pelo meu café, falava ao telemóvel com uma colega na esperança de me ajudar e era verdade que o meu tom de voz não era baixo. 

- Desta vez tens razão. Mas só desta vez… - avisei-o. 

- Já paraste para pensar que o problema dela possa não ser propriamente ortopédico? – Olhei-o atentamente. O Rafael era apenas jogador de Hóquei, como podia ele saber alguma matéria de patologia? 

- Desde quando sabes disto? 

- Podes não estar a par mas eu estive um ano inscrito na faculdade, no curso de fisioterapia. Tive cadeiras de anatomia e fisiologia e mais alguma coisa… 

- Não acredito! – disse admirada 

- Queres uma opinião minha? 

- Bem…a uma hora destas da noite, sou toda a ouvidos. 

- Quais são os antecedentes clínicos da utente? 

- Hum… Hipertensão arterial, dislipidemia e cirurgia ao abdómen em Agosto deste ano e recentemente colocação de prótese da anca após queda. Apenas isso. 

- Antes da cirurgia ela fazia treino de marcha? 

.- Sim. Aliás mesmo depois da cirurgia da anca ela realizava fisioterapia e caminhava. Apresentava limitações que eram justificadas pelo facto de ter parado as sessões depois de ser operada ao abdómen. 

- Ela poderá estar a fazer compressão do nervo como consequência da cirurgia ao abdómen. Não é muito comum mas pode acontecer. Ela fez TAC ou ressonância? 

- Fez TAC à coluna, apenas…As dores lombares que tinha eram associadas ao desuso dos músculos. 

- Ou talvez não. Se ela fizer TAC lombar poderá ser detetado compressão do nervo e isso esteja a atrasar a sua recuperação da marcha. Não falaste que ela tinha problemas de demência para justificar um internamento em neurologia – Fiquei a pensar no que ele me falava. 

- Hum…faz sentido. E se não for isso? 

- Se não for…eu chamaria manhosice em não querer caminhar – Olhei para ele pensativa. A sua teoria fazia sentido e sinceramente não me ocorria mais nada diferente. Após escrever todas as hipóteses, já passava meia hora depois da meia-noite. Era hora de me render ao cansaço e não tardou muito para adormecer assim que pousei a cabeça na almofada. 




O dia estava péssimo. Chovia imenso e o caminho até ao hospital demorou o dobro do costume. Era mais uma das consequências de viver numa cidade como esta…em dias de chuva o caos estava instalado. A condução tornava-se mais vagarosa, o receio de conduzir era maior, a visibilidade tornava.se péssima e a paciência era algo raro nos condutores. Praguejei, para mim mesma, a opção dos transportes públicos quando tinha carro próprio mas depois refleti que o estacionamento no hospital era escasso e teria de deixar o carro bem longe da entrada principal. E, verdade seja dita, em dias de chuva sabia bem o conforto de ter o autocarro a parar à porta principal. 

O percurso era o mesmo. Deslocar-me até aos balneários, vestir a minha farda branca, pegar em todos os cadernos e apontamentos, lancheira, chegar ao elevador e carregar no segundo andar. Eram oito horas em ponto quando começamos a passagem de turno. Os estagiários estavam presentes e, como as cadeiras eram escassas, ficávamos em pé para dar lugar aos enfermeiros. Tudo bem…não me chateava com isso. Afinal só me estava a preparar para a minha futura retenção de líquidos. 

- Conseguiu encontrar a solução, Clara? – a voz calorosa da minha orientadora fez-me despertar dos pensamentos. Naquele momento tinha todas as atenções centradas em mim. Corei. Não gostava nada daquilo. 

- Sim, tenho – respirei fundo, peguei nas minhas anotações e clareei a voz. Eu era capaz – Após uma melhor análise, a utente não apresenta síndrome demencial e essa hipótese foi descartada pela equipa médica, ou seja, a diminuição da marcha não estará relacionada com parte neurológica. Da parte ortopédica encontra-se clinicamente estável e não existe deslocamento nem infeção da prótese. Como as queixas da utente resultam desde a altura da cirurgia ao abdómen, a causa poderá ser alguma compressão resultante da cirurgia, por exemplo, rompimento de algum nervo acidentalmente. 

- E como poderá comprovar que seja uma compressão? 

- Através da realização de uma TAC lombar – Um certo silencio se gerou e achei que tinha dito asneiras. E da grossa. Todo o meu corpo vacilou e só queria um buraco para me enfiar. Passei o restante turno a matutar no assunto e no quão idiota tinha sido. 

- Hei, Clara – a minha orientadora chamava-me. 

- Sim, Enfermeira Natália. 

- Parabéns. Falamos com a equipa médica e sugerimos a realização de uma TAC lombar e tinha razão. A utente estava a fazer compressão dos nervos por rompimento dos mesmos. Estará aí a causa da diminuição da marcha. Estou muito orgulhosa de si! Eu sabia que era capaz – Oh…Deus! Fiquei em choque. Virei costas e só queria saltar de felicidade. Eu tinha acertado. Não queria acreditar! 


Assim que cheguei a casa fui inundada pelas vozes calorosas da Madalena e do Duarte. Pousei a minha gabardine no bengaleiro e juntei-me a eles que se encontravam na sala. Encontravam-se a estudar e saudei-os. 

- Olá Clara! 

- Como está a correr o estudo? – Perguntei interessada. Sabia que era uma semana complicada com vários testes para ambos. 

- Estou farto de estudar Matemática – prontificou-se a responder o Duarte. Dos dois, sem dúvida que ele era o que menos gostava de estudar. 

- Sabes…Matemática era a disciplina que menos gostava. Mas apesar disso tinha de estudar na mesma pois sem matemática não entrava na faculdade. 

- Não vejo a hora de deixar de estudar – desabafou. 

- Vocês viram o Rafael? 

- Acho que está na cozinha a preparar os seus batidos nojentos – Desta vez foi a Madalena que respondeu. Despedi-me deles e dirigi-me à cozinha. Pela hora, sabia que a Olívia estaria envolta dos tachos e panelas a preparar o jantar. E, como sempre, o cheiro proveniente da cozinha era divinal. 

- Boa tarde – saudei-os. A Madalena tinha razão pois o Rafael estava junto à banca da cozinha a deitar um batido no copo. 

- Oh Menina Clara! Já chegou. – Saudou-me a Olívia. Rafael apenas me olhou – quer petiscar alguma coisa antes do jantar? 

- Agradeço mas não tenho fome. Eu vim até aqui para agradecer ao Rafael – Naquele instante captei toda a sua atenção. 

- A mim? – Ele parecia surpreso – isso é uma estreia – ironizou 

- Tinhas razão. Consegui com que fizessem uma TAC à utente e detetaram compressão dos nervos. Era essa a causa da dificuldade na marcha! – disse mostrando a minha felicidade. Seria egoísta se não a partilhasse com ele, afinal…foi graças a ele que consegui resolver este caso clinico. 

- Eu disse que tinha razão! – Gabou-se. Não era apenas o meu agradecimento que se tornava numa estreia mas como o sorriso que iluminou o seu rosto, se tratava de uma novidade. Pelo menos para mim, sendo que era a primeira vez que o via a sorrir daquele jeito. Tão solto. Olívia acompanhou-nos. Conseguia ver espanto no seu rosto. 

- Mas não fiques convencido – retorqui – Ficas apenas com um terço dos loiros. 

- Tu não és mesmo nada modesta. 

- Não te preocupes, eu pago-te um café como forma de agradecimento. 

- Só um café? Está a ver Olívia…eu salvo-lhe o couro e ela só me sabe agradecer com um café – ironizou. Olívia lançou um sorriso jovial. Sentia-a surpreendida – merecia, no mínimo, um jantar! 

- Levas um café e não te queixes – praguejei – Vou preparar-me para o jantar que já são horas… até já – despedi-me deles mas antes de sair da cozinha voltei-me para trás. Havia algo que precisava de dizer – Sabes, Rafael…deves pensar melhor na hipótese de continuares o teu curso de fisioterapia. Podes salvar o couro a mais pessoas e o Hóquei não é para a vida toda… - Não deixei que ele falasse, simplesmente sai da cozinha mas sem antes observar a surpresa espalhada no rosto de Olívia e a forma como levou a mão ao peito.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Capitulo 3


- Precisas de alguma coisa? – A voz forte de Henrique fez-se soar, acabando com qualquer momento afetuoso entre nós os dois. 

- Que faças o que ela te pediu – Rafael respondeu como se fosse a coisa mais óbvia, no seu tom de voz presunçoso mas grave. 

- Não te deves meter onde não és chamado – Neste momento os dois estavam cara a cara e senti uma súbita vontade de vomitar. Queria chama-los à razão mas sentia-me sem forças. Tudo isto efeito do álcool. 

- Não é bem assim…ela pediu para te afastares e tu não estavas a respeitar o pedido dela. 

- Meu..Quem és tu para vires aqui e dizeres o quer que seja? Baza daqui. 

- Sou mais do que tu pensas 

- Rafael…por favor – supliquei. De facto, só me faltava que me acontecesse isto – vai-te embora. 

- Ouviste? Sai daqui, parvalhão. 

- Eu vou embora mas vens comigo…lembras-te? – os meus olhos esbugalharam com aquilo que acabei de ouvir. Eu sabia que não estava cem por cento sóbria por todo o álcool que ingeri mas…será que ele estava consciente daquilo que acabou de dizer? Ou melhor, porque raio ele estava aqui? Sentia-me confusa. 

- Tu conheces este idiota? – a voz do Henrique soava aos meus ouvidos mas estava tão atordoada que não fui capaz de lhe responder imediatamente. 

- Claro que conhece – respondeu o Rafael – Nós somos irmãos, vivemos na mesma casa – Eu não queria acreditar naquilo que me estava a acontecer… 

- Irmãos? – Henrique gargalhou – A Clara não tem irmãos. 

- Aí é que te enganas. Tem três irmãos… - notei alguma impaciência no Henrique e até eu estava impaciente com aquele momento absurdo. 

-Este cretino anda a sonhar! 

- É verdade – falei – é uma história longa… - não me sentia capaz de explicar-lhe a nossa história familiar. Só queria sair dali o mais rápido possível. 

- Não deverias voltar a chamar-me cretino – avisou lançando um olhar furioso. 

- Se não, o que me vais fazer, hum? Não passas de um betinho ricaço e mimado a usufruir da boa vida que tem – atirou sem demoras. Seu eu estava a achar aquele momento ridículo, aquela resposta por parte do Henrique deixou-me de boca aberta. Entendi que aqueles dois conheciam-se e não nutriam um sentimento bom entre ambos. Apercebi-me que numa fração de segundos, Rafael pousa o copo sobre o muro e encara-o ainda com mais fúria para que, de seguida, desse um murro no rosto do Henrique. Soltei de imediato um grito. 

- Rafael! – Gritei – para! 

- Queres saber o que te vou fazer? – Recuperando o murro que acabara de levar, o Henrique levantou-se do chão e sem demoras, empurra-o, abalroando-o para cima da mesa que estava ao pé da porta. Ajoelhando-se no chão, leva o seu punho até ao rosto dele, dando-lhe igualmente um murro. Não sei como consegui chegar ao pé deles mas tentei separá-los, em vão. Naquele instante fiquei completamente sóbria e não havia mínima hipótese de restar um pingo de álcool no meu sangue, perante a adrenalina que estava a sentir. Alguém juntou-se ao pé de nós e conseguiram separa-los. Ambos encontravam-se a sangrar mas a ira faiscava dos olhos de cada um. 

- Parem os dois! – gritei – que absurdo é este? 

- Esse filho da mãe merece que parta o rosto todo – gritava o Henrique 

- Ninguém vai bater em ninguém! Chega disto! – Se imaginasse que a minha noite acabaria com um rapaz que já namorisquei e não o via há meses e o meu irmão postiço que me odeia, os dois à pancada por minha causa, acharia que estava louca e teria de ser internada. Deus do céu! O que tinha sido isto? À medida que mais pessoal se juntava, na medida de saber o que se tinha passado, já eu estava a correr pela sala fora. Para mim, a noite tinha terminado. Não sabia onde tinha a minha bolsa, não tinha o meu telemóvel comigo e não sabia onde estava a Inês e não sabia como ia embora! Realmente…eu merecia. Bufei impaciente e tentei procurar pelo menos uma das opções. Procurei-a na esperança de a encontrar mas sem sucesso. Até que alguém me informa que ela foi-se embora, depois de ter vomitado quase todas as casas de banho e, de forma a prevenir um possível coma alcoólico, alguém a levou até casa. 

Boa. Até a minha melhor amiga tinha perdido naquela noite. Saí do edifício e caminhei até junto do parque estacionamento. De facto, não tinha motivos para o fazer pois não tinha as chaves do carro mas precisava de apanhar ar fresco. Caminhei sem destino e só parei quando entendi que estava ao pé do meu carro. Fiquei a olhar para ele numa tentativa falhada de me lembrar onde raio tinha colocado a minha bolsa. Respirei fundo, pela milésima vez naquela noite. Que raio… convivemos há quase um mês na mesma casa e só sabe me tratar mal e hoje deu-lhe para se armar em irmão protetor? Possivelmente a lucidez é algo que não faz parte da sua personalidade mas não poderia ficar surpreendida perante a falta de convívio com ele, de maneira a julgar o seu feitio. 

Tentei abrir o carro mesmo sabendo que estava a ser uma idiota. Claro que o carro que não ia abrir! Eu não tinha a chave. Só me apetecia chorar. Como era suposto voltar para casa quando não tinha o meu telemóvel nem as chaves do carro? Suspirei e deixei a minha cabeça descair sobre o vidro do carro, à espera que alguma espécie de milagre acontecesse. 

- Sai daí. Anda comigo e vamos para casa – Impressionante como eu não precisava de erguer a cabeça para saber quem estava ali. Pela segunda vez naquela noite, detetei-lhe a presença pela sua voz grossa e rouca. Ergui, depois de alguns segundos, o meu rosto encarando-o. Se eu não estava com bom aspeto, o Rafael muito menos. A camisa fora das calças e o seu rosto machucado dava-lhe um ar delinquente e cansado. 

- Engraçadinho…eu não preciso da tua boleia. 

- Então porque é que estás a tentar abrir o carro sem chaves? – lancei-lhe um ar furioso. 

- Porque não sei das minhas chaves – confessei em lamúria 

- Mesmo que as tivesses, não apresentas condições de conduzir – atirou com azedume. 

- eu estou bem – atirei sem demoras. Eu sabia que tinha bebido mais do que o habitual mas naquele momento sentia-me bem e em perfeitas condições de conduzir – não preciso da tua boleia. 

- Okay…como preferires – refutou, passando por mim e caminhar até em direção do seu carro. Ele até podia estar enganado em relação às minhas condições mentais para conduzir mas tinha de admitir que as minhas opções para irem embora, eram nulas. Podia voltar lá dentro e procurar a minha bolsa mas eu só queria ir embora, enfiar-me na minha cama e dormir desesperadamente. Esquecer aquela noite e bater na minha amiga por me deixar ali sozinha. Cruzei os braços e segui-o. Eu não tinha outra opção e escolher a sua boleira era a única coisa que me restava, sendo que morávamos na mesma casa. Entrei para o carro e notei o seu olhar surpreso. Se ele queria falar alguma coisa, optou por não fazê-lo e agradeci, mentalmente, por isso. O caminho até casa foi feito num silêncio inquietante mas não tinha forças para dirigir uma palavra que fosse. Acho que ele sentia o mesmo. 

Assim que chegamos a casa, sai do carro e num ápice a sua figura desaparecera da minha frente, rumando ao seu quarto. Revirei os olhos e pensei que toda aquela falsa amabilidade em proteger-me, tinha acabado. Só que as perguntas não saiam da minha cabeça e o Rafael devia-me uma explicação. Ele meteu-se na minha vida sem ter qualquer confiança ou justificação para tal. Mas porquê? Não ia deixar este assunto para amanhã e, por isso, saio do meu quarto disparada, abro a porta do quarto dele sem pedir licença e só parei quando me deparei na sua frente. Ele não esperava ver-me e notei isso pelo olhar surpreso. Estava em tronco nu apenas com as suas calças de sarja beges. 

- Quem te deu autorização de entrares no meu quarto? 

- Ninguém. Nem preciso! - Ele aproximou-se de mim, ficando a escassos metros de distância. Percebi que tinha pisado uma linha em entrar no seu quarto sem permissão. Mas sinceramente? Pouco me importava com isso. 

- O que é que tu queres? 

- Vais-me explicar que raio se passou na festa? – Perguntei, cruzando os braços, à espera de respostas para as minhas inquietações. 

- Não te devo explicações. 

- Muito bem…não saio daqui enquanto não falares. Nem que me expulses a pontapé – disse, firmemente. Ele percebeu que não ia arredar pé enquanto o assunto não fosse abordado. 

- Só te fiz um favor. 

- Um favor? 

- Sim. Aquele sacana ia beijar-te e podia jurar que estavas a recusar – abri a boca perante o meu espanto. 

- Tu por acaso conheces o Henrique para julga-lo? Ou melhor, dizeres que eu ia recusar um beijo dele? 

- Conheço o teu amigo o suficiente para saber o tipo de estirpe dele. E vais negar que não o querias beijar? 

- Estavas a espiar-me? 

- Achas que faria isso? Apenas passei por ali, vi-te com ele e percebi o suficiente. Aliás, somos irmãos não é? É suposto cuidarmos um do outro, certo? – Inquiriu com escárnio na sua voz 

- Tens uma fraca maneira de mostrares a tua proteção – acusei-o. Senti-o a exasperar-se. Passava as mãos pelo rosto ferido e, sem contar, o seu lábio começou a sangrar. Ao notar isso, passou a mão de forma a limpar o sangue mas esse gesto só fez aumentar o seu fluxo. 

- Porra! – praguejou – já tens a tua explicação, podes ir embora? – pediu-me à medida que o controlo se ia perdendo nele. 

- Podes crer que vou – atirei sem demoras. Abandonei o quarto dele, entrei no meu e foi ao pé do meu closet para buscar o meu saco de primeiros socorros. Se tem algo que nunca pode falhar a alguém que está prestes a tornar-se enfermeira, é um estojo de primeiros socorros pois é a nossa ferramenta básica e aliada. Bastaram alguns segundos para detetar o que precisava e deslocar-me, novamente ao quarto dele. Agora tinha um pano qualquer a tapar a boca mas percebi que o sangue escorria. Podia jurar que vi os seus olhos revirarem assim que me viu mas pouco me importei, no final de contas, os enfermeiros não podem descriminar raças, géneros e feitios bestas como neste caso. 

- O que foi? – Perguntei ao reparar no seu olhar impávido. Enquanto isso preparava o gelo improvisado e umas compressas com betadine. 

- Eu não preciso de ajuda – Ignorei-o pois sabia que não era o caso. Ninguém, no seu perfeito juízo, se recusa a negar ajuda quando tem a cara esmorrada. 

- Eu não pedi a tua permissão – refutei à medida que me ia aproximando dele – aqui – ordenei para que ele se sentasse junto à sua secretária. Para minha surpresa ele acarretou ao meu pedido sem contestar. Encostado na sua secretária, dava-me fácil acesso ao seu rosto sem ter de me colocar em bicos de pés. 

- Se existe coisa que tu fazes bem, é não pedires permissão – resmungou baixinho – Au! – gemeu assim que coloquei o betadine para desinfetar o lábio e limpar o restante sangue do seu nariz. Olhei-o de soslaio. 

- E ainda dizes que não precisas de ajuda – retorqui, aplicando o gelo pelo lábio – mas não te preocupes, eu não falo sobre este assunto com ninguém. 

- Que assunto? – Perguntou num sussurro. Sentia os seus olhos cravados em mim mas não sentia capaz de o olhar. 

- Que tratei das tuas mazelas. Mesmo que seja isso que os irmãos fazem uns aos outros. – se até ao momento sentia-o a olhar para mim, neste momento poderia jurar que toda a sua atenção estava vidrada em mim. Sentia-o tenso. Os seus músculos estavam contraídos. 

- Tu não és a minha irmã – atirou com azedume 

- Tens razão. Somos irmãos postiços – Desta vez encarei-o – o teu pai e a minha mãe estão juntos, quer tu queiras ou não – Ele abanou a cabeça. 

- Pois…se eu pudesse eles não estariam juntos – confessou. Aquele comentário deveria ferir-me pois ele estava a referir-se à minha mãe mas, no lugar disso, senti-o vazio como se tratasse de um desabafo perdido numa alma tão distante. Olhei-o atentamente. Os nossos pais estão juntos porque, por infelicidade do destino, a sua mãe tinha falecido. De outra forma, julgo que não seria possível que neste momento pudéssemos ter esta conversa. Acredito que ainda esteja a passar por um dor que, muito sinceramente, espero não ter de passar por ela. Mas a vida segue e ele terá de seguir com a sua. 

- Acredito que não seja fácil para ti…não teres a tua mãe. Pelo menos fisicamente – disse num murmuro. Tinha receio de que, ao falar na mãe dele, pudesse sentir ira e raiva, que pudesse ficar agressivo pois sabia que estava a pisar um terreno muito frágil. Olhei nos seus olhos e vi-lhe pânico. Podia senti-lo. 

- Não fales da minha mãe – pediu num sussurro quebrado. Retirei-lhe o gelo do rosto e retrai-me. 

- Desculpa. 

- Não peças desculpa. Apenas não fales nela – sentia a sua respiração ofegante e os seus olhos obscuros. No entanto, via qualquer coisa por detrás daquela armadura toda…aqueles grandes olhos castanhos escondiam muita coisa e não podia ter apenas escuridão. Tinha mais do que isso… 

Abanei a cabeça e decidi que não poderia fazer mais nada ali. Deixei o saco do gelo em cima da secretária. 

- Continua a colocar o gelo. Amanhã vais acordar com o rosto inchado e as perguntas vão surgir… - Não obtive resposta por parte dele, apenas a sua ignorância por qualquer preocupação da minha parte. Já estava com a minha mão sobre a maçaneta da porta, quando me virei para trás, encarando-o. 

- Não deves guardar só para ti a tua dor. Partilha-a…só assim seguirás enfrente – Posto isto, saio daquele quarto, achando que aquela noite não poderia dar mais. Fui até ao meu quarto num suspiro pesado e comecei a sentir as dores musculares e cansaço. Olhei para o relógio e percebi que passava das quatro horas da madrugada. Retirei o vestido e não fui capaz de fazer mais nada…apenas me deitei e deixei ser embalada por um sono profundo e merecido, deixando que as lembranças daquela noite assombrassem os meus sonhos mais profundos. 




Os dias foram passando e fico surpreendida com a minha capacidade de aguentar o meu estágio clinico e aulas simultâneas. Chego ao final do dia estafada e muitas das vezes não consigo ter forças para fazer relatórios. Esgotei com o limite de cafeina que o meu corpo aguenta e já me sinto taquicardica de manhã até à noite. Sinto o meu cérebro cansado e já não sei o que faço, em grande parte do tempo. Deixo tudo espalhado e esqueço-me de onde coloco as coisas. Estamos em Novembro e daqui a três dias tenho a prova final do semestre. A derradeira e mais dura das provas que me dará carimbo para terminar a minha fase como aluna. Ou pelo menos…no que respeita a ter aulas teóricas. O próximo semestre será inteiramente prático e não terei mais nenhuma oportunidade de repetir este exame. Ou passo…ou tenho o meu ano estragado. Arrepio-me só de pensar nessa possibilidade. Tenho tudo tão delineado e nada pode correr mal. 

- Meninos, venham para a mesa! – A voz doce da Olívia ecoou pela sala e, num ápice, a Madalena e o Duarte correram para a sala de jantar. Decidi dar uma pausa ao meu estudo, porque necessitava disso, e acabei por ajudar a Madalena na disciplina de Português. Acabamos por criar uma relação boa e apaziguadora e com o Duarte também. Já se tinha criado um hábito de os ajudar apesar de ambos terem uma explicadora. Acabava por ser uma maneira de criarmos uma relação e conceção fantástica. O mesmo não diria do Rafael que, depois da festa, raramente trocamos uma palavra. 

- O que é o jantar? – A voz frenética de Madalena irrompeu pela sala, enquanto nos sentávamos. Para minha surpresa o primeiro a chegar tinha sido o Rafael, o que não era um hábito. Por norma, era a Madalena a ganhar a corrida até à mesa mas hora era exceção. Após me sentar, chegou o Rogério e a minha mãe. Olhei-os e notei a cumplicidade que os embalava. Ficava mesmo feliz por eles. 

- Peixe grelhado com batatas assadas. 

- Hum, não gosto de peixe – resmungou o Duarte. 

- Pois mas o peixe é essencial para mantermos uma alimentação saudável – contrapôs o Rogério 

- É verdade. O peixe tem nutrientes essenciais para um bom crescimento. E vocês estão numa fase importante de crescimento e necessitam de todos os nutrientes para tirarem boas notas - contrapus 

- É isso que comes para seres enfermeira? – Gargalhei perante a pergunta da Madalena 

- Hum…como muito peixe e não só. Aliás, tenho uma alimentação equilibrada. Como um pouco de tudo mas sem excessos. 

- És como o Rafael – Desta vez foi Duarte que tomou a palavra – tem de comer comida saudável e que não presta por causa do Hóquei. Isso é muito…mau! – Gargalhei as suas expressões inocentes. Todos nos acompanharam e, de soslaio, percebo que o Rafael solta um sorriso tímido e trocista. Acaba por lhe atirar um pequeno pedaço de pão. 

- Engraçadinho…vais pedir para te levar mais vezes para comer cachorros quentes – ameaçou o pequeno irmão, num tom fingido de ofensa. 

- Rafael… - O Rogério tomou conta do assunto – Estávamos a pensar em ver o teu próximo jogo, quando jogarem em casa. Vi no calendário que calha a um domingo à tarde e seria um programa perfeito para ser feito em família. Todos juntos – Notei o receio do Rogério em falar pois percebi que, o facto de dizer que era um programa familiar, incluir-me-ia e à minha mãe também, o que seria uma estreia. Estamos a viver juntos há dois meses e todas as tentativas de um programa familiar foram deliberadas pela ausência dele. E eu percebia o quanto essa atitude magoava o Rogério. Um certo silêncio gerou-se na sala à espera de uma resposta por parte do Rafael. 

- Façam como entenderem – respondeu num encolher de ombros – eu estarei a jogar na mesma. 

- Vale…será um dia ótimo – uma réstia de esperança alcançou o olhar de Rogério mesmo sabendo que era um passo muito pequeno e que poderia dar em nada. Mas ele tentava. 

- Será a oportunidade ideal sendo que deve ser dos meus últimos domingos disponíveis… - resolvi falar – pelo menos até começar o meu estágio e de certeza que não surgirá mais dias disponíveis. 

- Quando inicias o teu estágio no Hospital de Braga a tempo inteiro? 

- Em janeiro. Até lá, terei exames e uma pausa até começar. 

- Quando deres por ti…estarás com o diploma na mão e a trabalhar! 

- É verdade – sorri ao sonhar com esse dia – mal posso esperar para que esse dia chegue. 

- Quais são os teus planos para depois da licenciatura? – suei. Queria muito evitar aquela pergunta pois ainda não estava preparada para anunciar os meus verdadeiros planos. Sabia que não a poderia evitar mas aquele momento não era o indicado para dar novidades, sem falar que a primeira pessoa a saber teria de ser a minha mãe. 

- Ainda não sei muito bem… - optei por responder. 

- Era tão bom que ficasses ao pé de nós – desta vez foi a minha mãe que tomara a iniciativa de falar. Olhei-a e um sorriso nada genuíno deslumbrou o meu rosto. 

- Londres fica a dois passos daqui – Todos os olhares se centraram numa só pessoa. Nele. O meu sangue gelou. Olhava-o impávida. Ele sabia dos meus planos para Londres. Como era possível? Ninguém sabia disso. 

- O queres dizer com Londres? –a minha mãe sentia-se confusa 

- A Clara não foi aceite no St- Thomas Hospital? Pelo menos era o que a carta dizia – a naturalidade com que afrontava toda a gente com aquela notícia, deixou-me sem chão. Ele sabia da carta. Ninguém a tinha visto e nem eu me lembrava que recebera uma carta registada que tinha sido aceite para um estágio no hospital mais prestigiado de Londres. 

- Isto é verdade, filha? – Ver o espanto e medo no olhar da minha mãe, deixava-me angustiada. 

- Eu…não era assim…não é verdade….Quer dizer… 

- Vais para Londres? 

- Eu ia falar disto mas não desta forma – acabei por dizer sendo dominada pelo nervosismo e fúria. Olhei para ele e via-lhe espanto mas eu só lhe conseguia lançar fúria. Ele não tinha o direito de fazer isto – Eu cheguei a fazer candidatura para o hospital de Londres por ser um objetivo depois da licenciatura. Recebi a confirmação na semana passada mas queria esperar o momento oportuno para anunciar. 

- Então, queres imigrar é isso? 

- Eu não sei…eu preciso de pensar com tempo –ripostei deixando o meu nervosismo vir à tona – como é que soubeste ? – perguntei-lhe deixando que a minha raiva fosse lançada em cada palavra dita. 

- Tu tinhas a carta aberta em cima da banca da cozinha! – defendeu-se – qualquer pessoa podia ter lido! Se não querias que não se soubesse, deverias saber guardar melhor os segredos – atirou com azedume. 

- Isso não dá o direito de falares da minha vida pessoal sem minha permissão! 

- Meninos… - O Rogério tentou apaziguar o mau ambiente que estava gerado sobre a mesa. Percebi que não era assunto para ser discutido ali e por isso mesmo acalmei-me, pelo menos por enquanto. Nada conseguia deter a desilusão estampada no rosto da minha mãe mesmo que ela tentasse esconder. 

- Desculpem… - O resto do jantar foi passado com conversas curtas e bastou o ar jovial da Madalena ou as conversas sobre as aulas do Duarte, para esquecer o que se tinha passado. Para eles até pode ser o suficiente mas não para mim. Não consigo deixar de pensar no descuido de deixar a carta à vista de todos mas, pior que isso, foi ter o Rafael a cravar este punhal pelas minhas costas. Não deveria estar surpreendida pois só mostra o caracter dele e o quanto ele odeia-me. Por isso é que fez isto, para me humilhar. Ele sabia o que estava a fazer e isso só me deixa com um sentimento de culpa ainda maior. 

Assim que a refeição terminou, decidi sair da mesa e pedi para falar com a minha mãe. Ela merecia uma justificação minha. 

- Mãe… aquilo que ouviste sobre Londres. Eu…desculpa. Não queria que fosse desta forma e se eu não te falei nada antes foi porque… - respirei fundo – ainda não tinha certezas se queria ou se me iriam aceitar. Não podia abordar um assunto tão sério se não tivesse certezas que iria dar certo – Ela olhava-me atentamente e notava um pouco de tristeza no seu olhar. 

- Clara, confesso que fiquei dececionada por não teres falado antes. Mesmo que não desse certo ou não te aceitassem, eu estou aqui para te apoiar. 

- Mas eu… - ela interrompe-me 

- Ouve – pediu – Tens de aprender que não podes contar com as pessoas apenas para os bons momentos nem muito menos partilhar as vitórias. Aprende a partilhar as derrotas também porque não é o facto de esconderes as tuas dores que faz de ti mais fraca. 

- Eu sei… - Baixei o olhar. A minha mãe tinha razão. 

- Desde quando é que desejas viver para Londres? 

- Eu sempre quis algo diferente para a minha vida e quero aproveitar enquanto posso…enquanto não tenho marido e filhos. Quero dar o melhor de mim e ter uma aprendizagem diferente, entende? Desculpa…mais uma vez – pedi. Eu via no seu olhar um desalento que me fazia doer o peito. Odiava aquela sensação. Sentia-a a apertar as minhas mãos. 

- E eu só quero que sejas feliz. Da mesma forma que deste força para voltar a encontrar a felicidade mesmo que isso dependesse um pouco da tua infelicidade, eu desejo-te o mesmo! 

- Mãe eu estou feliz por estares assim, tu sabes… - ela voltou a interromper-me. 

- Eu sei. Mas também sei que não querias viver aqui e que no fundo tu não estás inteiramente bem nesta casa, nesta nova vida…eu conheço-te Clara. E sei reconhecer o esforço que fazes para não transparecer isso! Por isso…se a tua felicidade depende de vieres em Londres ou em outra cidade, eu serei a primeira a apoiar-te da mesma forma que te apoiarei caso falhes. Não tenhas medo, apenas voa! – Senti-me emocionada com as suas palavras e as lágrimas turvavam-me a vista. 

- Oh mãe, obrigada! Eu adoro-te muito – abracei-a e senti que nada de mal me poderia acontecer enquanto tivesse o seu conforto e abraço. Ficamos por uns momentos assim, até que a sentir a desprender-se de mim. 

- Acho que está na hora de teres outra conversa… - Inicialmente não entendi o que queria dizer mas após ver a figura do Rafael a escassos metros de distância, entendi as suas palavras. Após nos deixar sozinhos, decidi falar. 

- Não tinhas o direito de fazer aquilo – a minha voz era um murmuro mas não pretendia eleva-la. 

- Pensei que fosse um assunto público – tentou desvalorizar. 

- A minha vida não é um assunto público – ripostei 

- Desculpa – pediu erguendo as mãos no ar – a minha intenção não era causar este alarido todo. Não sou esse tipo de pessoa. 

- Pois não…és mais do tipo de pessoa que gosta de humilhar, não é? Deves sentir-te contente pela humilhação – notava confusão no seu rosto 

- Achas que fiz aquilo para te humilhar? 

- Por que outra razão farias? Não acredito na tua versão de ser intencional. Afinal tu odeias-me! 

- Eu não te odeio! – Ripostou elevando o seu tom de voz. Notei seriedade nas suas palavras mas não queria acreditar nisso 

- Tu odeias o facto de estar a viver na tua casa e sinto desde o início que descarregas em cima de mim a tua frustração! – Já não conseguia aguentar a calma. 

- Isto não tem nada a ver contigo! – gritou-me – Não foste tu que quiseste vir para aqui viver nem tão pouco impingiste a tua presença na minha vida! 

- Tu és assim porque não sabes aceitar que a vida continua. Mas não te preocupes que não precisas de conviver comigo por muito tempo. Apenas uns meses até sair definitivamente daqui! – Um Sorriso escabroso invadiu o seu rosto 

- Tu até podes ir para Londres e nunca mais voltares, até podes ficar aqui todos os dias durante toda a tua vida mas não será isso que fará com que as coisas voltem a ser o que eram aqui. Não é a tua presença ou a da tua mãe que me afeta. Vocês até podem ir embora e o que importa? Nada disso apagará o que sinto – Ele estava descontrolado – Nada disso trará a minha mãe de volta… - disse num sussurro envolto de tanta dor. Numa fração de segundos fechei os olhos e uma pequena dor no peito avassalou-me. Não consegui dizer nada. Vi-o a desaparecer pela escuridão até ao seu quarto e só o bater estrondoso da porta, me fez despertar daquele transe.

domingo, 26 de abril de 2020

Capitulo 2



- Buh! – uma voz soou por trás do meu ouvido, fazendo com que saltasse da cadeira e soltasse um gemido perante a surpresa. Ainda com as mãos no peito olho de soslaio para o meu lado esquerdo e reparo no sorrido estridente da Inês que se desfazia numa gargalhada, provavelmente ao observar a minha cara de terror e susto. 

- Porra Inês, que susto! – refilei enquanto ela se sentava no banco à minha frente. Estava tão atolada a estudar e com os headphones nos ouvidos, que não reparei na sua chegada. 

- Não consegui evitar! Estavas tão concentrada nesses livros que se chamasse pelo teu nome, nem irias ouvir! - Fechei os livros e despojei-os num canto da mesa. Naquele instante reparei que já me sentia cansada de estudar sobre epistemologia e que o meu cérebro precisava urgentemente de açúcar e cafeina. 

- Provavelmente… - desabafei. Naquele instante a Inês chama o empregado da cafetaria. 

- Pode trazer-me um cappuccino e umas torradas? 

- Com certeza. Desejam mais alguma coisa? 

- Sim – respondi – traga-me um café, por favor. 

- É para já… - Deixei que o empregado saísse para centrar a minha atenção na Inês. 

- Então, o que precisas de mim? 

- Preciso que tires uma tarde para vires comigo comprar móveis para a sala! – pediu com a sua voz a transpor angustia – não consigo cumprir essa tarefa sem ter alguém comigo. O Pedro só chega na próxima semana e será tarde por causa do seu aniversário. Tenho de tratar disso o mais rápido possível…por favor, anda comigo! – suplicou 

- Estás mesmo a pedir-me para fazer aquilo que mais odeio? Fazer compras? – inquiri 

- Oh…por favor! És a minha amiga, tens de me ajudar! – a sua voz suplicante fez-me gargalhar – se me ajudares prometo que fico um dia inteiro a ouvir-te falar sobre essas matérias estranhas que aprendes…okay, um dia talvez seja muito tempo mas…uma tarde? Uma manhã? Eu aceito ser tua cobaia para tirares sangue, colocares soros…o que tu quiseres! Mas.por.favor.ajuda-me! – gargalhei ainda mais porque estava a ser hilariante ver o desespero dela. 

- Okay…gosto dessa ideia. Na próxima semana preciso de uma cobaia para treinar os posicionamentos e transferências. 

- aceito! 

- combinado. Quando precisas de tratar disso? 

- o mais breve possível. O que dizes de ser sábado? 

- Fica combinado para esse dia – respondi enquanto que o empregado chegava ao pé de nós com os nossos pedidos. Apressei-me a beber o café e…caramba! Só sentir o sabor da cafeina sobre a minha língua, o meu astral rejuvenesceu. 

- E tu…como estão a correr as coisas na casa nova? Não tens falado muito sobre isso. 

- Hum…estão a correr bem – ajeitei-me na cadeira e encarei-a – também não tenho estado muito tempo pela casa, tenho tido dias terríveis no que respeita ao estudo e trabalhos, sem falar no meu estágio no hospital que começou na semana passada. Por isso, foram três semanas que voaram pela minha cabeça – Dei mais um gole no café – confesso que é estranho acordar num quarto enorme, numa cama que cabe três pessoas…não me queixo, de facto. A cama é tão boa! – Confessei, levando a Inês a gargalhar – tenho sempre as refeições prontas, roupa lavada…é estranho não ter de fazer o jantar ou conviver com mais pessoas e todas elas ainda estranhas para mim. 

- Mas isso é normal – inquiriu – só com o passar do tempo é que te vais habituando. 

- Sim, eu sei. O mais importante é que a minha mãe esteja feliz e isso vejo que está a acontecer. 

- Também será por pouco tempo, não é? Sendo que o teu objetivo é iniciares carreira fora do país – Abanei a cabeça, concordando com ela – Já tens em mente para onde queres ir viver? 

- Estive a pesquisar e estou indecisa entre Amesterdão ou Londres. Trata-se das melhores cidades para trabalhar na minha área e sei que a progressão na minha carreira será importantíssima. – Enquanto falava, sentia o semblante carregado da Inês. Ela era contra a minha ideia de trabalhar fora do país. 

- Sabes que aqui, em Portugal, também podes progredir na carreira sem ter de imigrar? 

- Sei…sei que isso pode acontecer daqui a vinte, trinta ou quarenta anos de trabalho. Mas também não se trata da progressão da carreira. Eu quero conhecer o mundo, quero ter esta experiencia na minha vida e eu sempre desejei viver em outro país! Não quero esperar ara casar e ter filhos para ver o meu sonho a dissipar-se. 

- Clara, eu compreendo os teus sonhos e apoio-te nisso mas é que…eu vou morrer de saudades tuas. És a minha melhor amiga, como vou sobreviver sem ti? 

- Londres não é assim tão longe, são duas horas de viagem! E além do mais, existe a internet, Skype, whatsapp…estaremos sempre conectadas. 

- Quer dizer que vais escolher Londres? – Sorri 

- Em principio sim…adorei conhecer aquela cidade e quando lá estive senti-me bem. 

- Não podes, primeiro, experimentar trabalhar cá? Nem que seja um ano? É que falta menos de um ano para isso acontecer e não me sinto preparada. 

- Não posso arriscar a que algo mude os meus planos. Tenho tudo delineado…- Inês bufou. 

- Minha cara amiga…a vida não é como uma agenda em que podes traçar datas. Não há como fugir ao destino. 

- O meu Destino é acabar o curso e rumar até Londres! – conclui. 

- Okay… - ela levantou os braços na defensiva – já agora, a tua mãe sabe dos teus planos? 

- Ainda não. Com esta mudança de casa não quis que ela tivesse outras preocupações. E…ainda é cedo. 

- Muito bem…ah! Ia-me esquecendo! No próximo domingo temos uma pequena festa no Bo Zên – Bo Zên tratava-se de um espaço maravilhoso localizado na encosta do Bom Jesus e com uma vista lindíssima sobre a cidade. Aproveitaram um edifício antigo, restauraram e fizeram um espaço de eventos que, na época de verão, realizavam sunsets. A vista compensava o preço caríssimo da entrada. 

- Festa no Bo Zên em pleno inverno? 

- Hum-hum…É o aniversário da Carolina e como ela tem conhecimentos com o dono do espaço, conseguiu o local para uma festa privada. 

- Pois…o aniversário da carolina. Já não me lembrava! 

A conversa rondou por mais tempo e quando dei por mim, passavam das sete horas da tarde. Despedi-me da Inês e rumei até casa. Pelo caminho não consegui de deixar de pensar na nossa conversa sobre os meus planos de mudar de país assim que terminasse a minha licenciatura. Este sonho começou a ganhar asas quando percebi que queria fazer algo diferente na minha vida, mudar o meu rumo de uma forma drástica. Sempre tive o desejo de conhecer o mundo e ir além fronteiras. Foi um sonho que estava na gaveta mas, sempre que viajava, o bichinho começou a ser despertado…eu adoro o meu país e sei que tenho os meus amigos e a minha família, no entanto, a minha essência não pertence aqui. Agora que a minha mãe está feliz e ao lado de alguém que a ama, sei que a minha missão de cuidar dela está a chegar ao fim. Irá custar a despedida mas será apenas fisicamente. 




Uma…duas…três voltas na cama e algo continuava a soar aos meus ouvidos. Queria dormir, precisava disso mas algo impedia que caísse no sono profundo. Um barulho estridente proveniente do outro lado da parede, fazia ecoar nos meus ouvidos e o meu coração latejava fortemente. Com a minha mão, tateei pela mesinha de cabeceira à procura do meu telemóvel e, assim que o encontrei, cliquei no botão. Dez horas e catorze minutos. Nem duas horas tinham passado desde que me deitara na cama, depois de ter cumprido o meu turno noturno no hospital. Sentia-me exausta e queria tanto dormir mas, agora que estava na cama, não conseguia cair num sono profundo porque algo estava a impedir isso. Uma música completamente estridente e barulhenta ecoava no quarto ao lado. Ainda tentei fechar os olhos e fazer meditação mas não estava a resultar. Odiava que interrompessem o meu sono. Será que as pessoas não sabem que é necessário cumprir, no mínimo, sete horas de sono profundo para o nosso organismo se revitalizar e sermos pessoas saudáveis? Provavelmente o causador deste barulho não o sabe. 

Não aguentando mais, tiro os cobertores de cima de mim, calço os chinelos e, pouco me importando de estar de pijama, abro a porta do meu quarto. Dou três batidas na porta do quarto ao lado e percebo, segundos depois, que sou ignorada. Bato fortemente, despejando a minha raiva nas batidas e sinto que alguém me ouviu. A musica para e ouço passos a virem em direção à porta. Esta abre-se num ápice e uma figura masculina, alta e com um aspeto suado, surge na minha frente. 

- O que queres? – Perguntou no seu tom ríspido. O suor escorria pelo seu rosto delgado e vermelho, a t-shirt estava colada ao tronco, delineando os músculos do seu corpo. 

- Quero que desligues essa música ou que a coloques num som tão baixo que nem aos peixes do rio seja audível! – Respondo no mesmo tom que o dele. 

- Porque raio irei desligar a música? 

- Porque quero dormir! – Ripostei – Estive a trabalhar de noite, preciso de descansar mas torna-se impossível quando tenho essa musica a ecoar nas paredes do meu quarto! 

- E o que tenho a ver com isso? – Revirei os olhos. Estava a tentar controlar-me mas tornava-se numa tarefa difícil com alguém como ele. – Se queres dormir, dorme. Tu trabalhaste de noite, eu trabalho agora. 

- Eu estava a tentar dormir mas a tua música está demasiado alta. Assim é impossível dormir! 

- O problema é teu, não meu. Se queres dormir, vai para a tua casa e dorme. Eu estou na minha casa e faço o que quiser. São dez horas da manhã. – Estava estupefacta com aquilo que ouvia. Aquela arrogância toda dava-me náuseas e não conseguia acreditar como é que uma pessoa como ele poderia ser filho do Rogério. Ou melhor…porque é que ele só era assim comigo? 

- Que mal eu te fiz para seres assim tão rude? 

- Desculpa? 

- Desde que aqui cheguei que me tratas mal. Nunca te fiz nada, evito falar contigo e quando tento tu…simplesmente tratas-me com sete pedras na mão como se fosse tua inimiga! Eu sei que não deve ser fácil lidar com esta situação de vivermos cá em casa mas tens de pensar que o teu pai é que quis assim e é para a felicidade dele! Não peço para sermos amigos, só queria que tivéssemos uma relação cordial, pode ser? – Senti a necessidade de dizer aquilo que sentia e via que estava a acontecer. Só poderia ser aquela a justificação daquela frieza toda. De alguém que não aceitava um novo amor do seu progenitor depois da morte da mãe. No lugar dele poderia sentir o mesmo mas não optaria por ser tão besta. 

- Já acabaste de falar? – Perguntou, ignorando tudo aquilo que acabara de dizer – Com licença, bom descanso – Dito isto, fecha a porta batendo-a com força. Sentia-a a estremecer e fiquei estática sem mexer um único músculo. Naquele instante percebi que tinha acabado de falar para alguém mais ignorante que uma porta e, de forma a controlar o meu ritmo cardíaco, fui obrigada a respirar fundo e fechar os olhos. Abanei a cabeça e sai dali. Fui até ao meu quarto e tentei deitar-me mas já não conseguia dormir, toda a possibilidade de conseguir adormecer tinha sido dissipada e nem por já não ter aquela música barulhenta, me fazia sentir mais sossegada. Após uma hora numa tentativa falhada de conseguir dormir, acabei por me levantar e fui tomar banho. 

Desci para o piso inferior e senti o aroma agradável da comida a pairar sobre a sala de estar. Inspirei profundamente e deliciei-me. As vozes abafadas vindo da sala, detetava a presença do Rogério, da minha mãe e dos miúdos. Após uns segundos de reflexão, percebi que era sábado e isso justificava a presença de todos na hora do almoço. 

- Oh, filha! Já acordaste? – a Voz da minha mãe detetava surpresa pois não esperava me encontrar. 

- Hum…não tinha sono – menti. Na verdade, apenas omiti o verdadeiro motivo da minha perda de sono que, por sinal, não se encontrava ali. Respirei de alivio pois não pretendia encontra-lo depois de ser ignorada e, mais uma vez, desrespeitada. 

- Junta-te a nós! O frango estufado está uma delicia – Desta vez foi Rogério que falou. O habitual fato e gravata que estava habituada a ver presente na sua figura, tinha sido trocada pelo fato de treino. 

- Obrigada – sentei-me no lugar habitual, ao pé da minha mãe. O Rogério tinha razão, o frango estava com um aspeto divinal e já sentia o meu estomago a reclamar por comida. Servi-me um pouco, o suficiente para não enjoar tendo em questão o facto de ter acordado há pouco tempo. 

- O Rafael, alguém o viu? – Perguntou o Rogério. 

- O menino Rafael não vem para o almoço – a Voz doce e amável de Olívia fez-se ouvir, enquanto pousava a travessa do arroz – saiu para treinar na academia. 

- Ele poderia ter avisado! 

- Como o Sr. Rogério estava ao telefone ele não quis incomodar… - Olhei atentamente para Olívia e entendi que, por detrás daquela figura segura e profissional, existia um lado doce e protetor em relação ao Rafael. Ela protegia-o sempre mesmo quando não tinha razão para o fazer. Entendi isso sempre que via o seu olhar em relação a ele. Olívia não era uma simples governanta da casa, era mais que isso. Tratava-se de um pilar familiar para os miúdos mas em relação ao Rafael era diferente…como se ela fosse uma avó para ele e quisesse dar o amor e proteção que a mãe dele não lhe pôde dar nestes anos todos. Abanei a cabeça afastando estes pensamentos, sabendo que não cabia a mim julga-los. Foquei a minha atenção no prato de comida que tinha na minha frente mas nem o sabor delicioso da comida me deixava de sentir intrigada por toda esta história. 






Um pouco de rímel, iluminador, blush e um eyeliner perfeito, chegariam para a maquilhagem. E…voilá! Estava pronta para mais uma festa. Confesso que adoro este processo todo de maquilhagem e não consigo sair de casa, sem pelo menos a base e rímel. Para o bem da minha autoestima porque a minha cara pálida já é o suficiente para que evite de olhar ao espelho sem me sentir um cadáver. É raro o dia que saio de casa sem me maquilhar e quando o faço, passo o dia todo a ter as pessoas a perguntarem se me sinto bem, pois estou demasiado pálida. Não. Eu não estou pálida. Eu sou pálida por natureza, sinal de pouca melatonina no meu corpo. 

Acabei por ajeitar o vestido preto de veludo, vesti a jaqueta vermelha, peguei na minha mala e sai do quarto. Ao bater a porta, deparei com um voluto especado à minha frente, junto da porta ao lado. Encarei e soltei um pequeno gemido. 

- Não precisas de te assustar – senti um pouco de sarcasmo na sua voz. Encarei-o, semicerrando os olhos 

- Eu não me assustei. Apenas não esperava ver-te aí…às escuras. 

- Estava a acabar de sair do quarto – Olhei-o de soslaio e notei algo de estranho. Faltava-lhe o habitual sarcasmo. Podia jurar que, por detrás daquele olhar escuro, surgia-lhe um brilho. 

- Ainda bem – não alonguei muito a conversa, não só por já estar atrasada para a festa mas por querer evitar qualquer conversa com o Rafael. Ele não era do tipo de pessoa que me deixa confortável e também por querer uma relação cordial, para bem da família. Então jurei a mim mesma que evitaria qualquer contacto com ele, pelo menos por enquanto. Percebi que até a minha mãe e o Rogério perceberem destes atritos entre nós, ou melhor, a relutância toda dele comigo, e o quanto isso os deixa tristes. Não quero perturbar o bem-estar deles e, para isso, teria de deixar de me aproximar do meu meio-irmão e querer uma boa relação com ele. Pelo menos, por um bom bocado. 

O caminho até ao Bo Zên foi rápido pois a distancia da minha casa até lá era pouca. Passava um pouco das cinco da tarde e o sol estava já a esconder-se pelo meio das montanhas do Gerês. Lá ao longe. Estacionei o carro e caminhei até junto da varanda do terraço. Sabia que no interior da casa já se encontravam os convidados mas queria aproveitar um pouco aquele sunset. Sempre gostei de observar o pôr-do-sol e saborear toda a calma que isso me transpunha. Apesar do frio de inverno que se fazia sentir, um calor dissipava pelo meu corpo, fazendo-me aquecer. Sorri timidamente. 

Decidi entrar assim que o sol tinha dado lugar à habitual escuridão da noite. A música fazia-se sentir e os convidados conversavam animadamente. Olhei ao meu redor na esperança de ver alguma cara conhecida e, sem esperar, sinto um toque nos meus ombros. 

- Hei! Estava a ver que ias ficar eternamente lá fora a observar as montanhas! – Gracejou Inês. Gargalhei. 

- Sabes que não resisto a um bom pôr-do-sol! 

- Olha…que bebida queres? – Mudou de assunto 

- Hum, não sei. Antes de mais, quero felicitar a Carolina! Sabes onde ela está? 

- Acho que está ao pé da pista – Assim que a Inês me indicou da sua presença, caminhei até ao outro lado do salão e, após procurar por uns segundos, deparei-me com a Carolina. Cheguei ao pé dela. 

- Hei, Carolina! Feliz Aniversário! – Felicitei-a dando-lhe um abraço caloroso. Carolina tratava-se uma colega de faculdade que, apesar de não sermos do mesmo curso, fomos caloiras do mesmo ano e a amizade perdurou. Não eramos amigas intimas mas gostava dela. Transmitia uma simplicidade e energia que era contagiante e isso refletia-se no seu rosto jovial e belo. 

- Obrigada Clara! Fico feliz por estares aqui – desejou com sinceridade 

- Vim com o maior prazer! 

- Fica à vontade, se precisares de alguma coisa podes pedir aos empregados. Hoje estão por nossa conta – Dito isto piscou-me o olho, deixando escapar um sorriso alegre. 

- Muito bem, adoro saber disso! – Enquanto olhava em meu redor observando cada detalhe daquela decoração impecável e linda, não tinha reparado na chegada de alguém ao pé de nós. Só mesmo quando o meu olhar incidiu novamente na Carolina, é que percebi na presença daquela pessoa. O meu espanto era notório, até mesmo por estar a abrir a boca perante o espanto. Será que até aqui tinha de levar com o meu irmãozinho? Respirei fundo. 

- O que fazes aqui? – inquiri, deixando que o eu tom de voz fosse mais alto do que o desejado. 

- O mesmo que tu – respondeu prontamente. 

- Vocês conhecem-se? – Carolina olhava-nos confusa e não seria para menos. 

- Sim, o Rafael não te contou? Ele é o meu irmão – anunciei com uma amabilidade falsa, como se quisesse que as pessoas soubessem que eramos pessoas próximas – quer dizer…meio-irmão. Os nossos pais são companheiros. 

- Oh! Mas isso é maravilhoso – o espanto e alegria era visível no rosto dela mas o mesmo não poderia dizer do Rafael. Sentia a sua bílis a querer escapulir da sua boca e o desagrado era notório. Ele não queria aquilo, não desejava que anunciasse o nosso parentesco. Os seus olhos obscuros e frios detalhavam os seus sentimentos. Eu deveria sentir-me mal por ter tocado num assunto que ainda era sensível, pelo menos para ele. Só que, ao contrário do esperado, sentia-me a cintilar – Não me tinhas dito nada… - Carolina sussurrou –lhe 

- Não é praticamente um assunto de ser abordado na via publica – atirou com azedume. 

- Vocês conhecem-se também? – inquiri, querendo acabar com o mau ambiente que se tinha gerado. 

- Hum-hum…somos namorados – Deixei escapar um sorriso leve. A vida era mesmo uma caixinha de surpresas. 

- Que bom! Parece que nos vamos ver mais vezes. 

- Sim! Mas isso é bom! – Não deixei de olhar para o Rafael e ele olhava-me com uma certa fúria, ainda que fosse controlada. Não seria para menos, tendo em consideração eu tinha acabado de confessar à sua namorada, algo intimo da vida dele e que, pelos vistos, ela ainda não sabia. Apesar do sorriso leve de Carolina, sentia que estava a vacilar e precisava de falar com ele sobre esse assunto. Foi então que, após ter feito estragos, decidi que era a hora de rumar para outro canto da sala. Despedi-me deles e corri, em passos pequenos, à procura da Inês. Não demorou muito para a encontrar. Já se encontrava alegre e divertida a conversar com os nossos colegas. 

- Não achas que estás a beber demais…? – sugeri, enquanto lhe retirava o copo de Marguerita da mão. 

- Caramba, Clara. Estamos praticamente no inicio da festa! – reclamou 

- Por isso mesmo – tentei chama-la à razão – além do mais, eu estou a precisar de um gole de álcool e bem forte – disse enquanto bebia de uma só golada, o que restava daquele licor. Era forte. Senti o álcool a queimar cada pedaço do meu corpo e a bilis despertou em mim uma súbita vontade de vomitar. 

- Tu odeias Margueritas. 

- Pois odeio… 

- O que se passa? 

- Nem vais acreditar quem está aqui na festa. 

- Quem? 

- O meu novo irmão. 

- O teu quê? – Tinha-me esquecido que lhe tinha ocultado esta parte da minha recente história. 

- Ainda não te tinha contado mas o Rogério tem um filho mais velho, o Rafael. Ele ainda não aceitou o relacionamento do pai e por isso não me suporta. E…ele está aqui. 

- Quem é ele? É amigo da Carolina? 

- É o namorado dela – senti o olhar da Inês a esbugalharem enquanto me olhava atentamente. 

- Oh não. Que coincidência trágica! – disse num tom melodramático e que conhecia aquele tom. Só significava uma coisa. A Inês estava a ficar bêbada. Após dizer isso, desatou numa gargalhada estridente. Abanei a cabeça pois sabia que restava ser, no resto da noite, a sua ama seca – preciso de outra Marguerita! Vamos até ao bar! 

- Não, o que tu realmente precisas é de apanhar ar e parar de beber – sugeri, no entanto, em vão. 

O resto da noite passou a voar. Acabei por beber alguns cocktails e nenhum deles era Marguerita. Aquilo tinha um sabor horrível e ainda sentia o meu tubo digestivo queimado com aquele álcool todo. O ambiente estava impecável e o DJ era ótimo. Sabia que musicas tocar e como gerir um ambiente digno de festa. Sabia que tinha de tomar conta da Inês mas chegou a uma certa parte da noite que lhe perdi o rasto. Sabia que a iria encontrar e por isso deixei-me guiar pela boa onda da música. Pensei no tempo que já não me divertia daquele jeito…solta e sem pensar nos meus problemas. De facto, já fazia imenso tempo. Sabia que depois de amanhã já estaria novamente no hospital para mais um turno do estágio e que, no final do trabalho, estaria de volta da minha secretária e do computador, realizando aqueles relatórios péssimos e que me tiravam as horas de sono. Abanei a cabeça. Não era hora de pensar nisso…não naquele instante em que sentia um sorriso genuíno a florear pelo meu rosto, fruto dos efeitos secundários do álcool. 

- Clara? – Uma voz masculina fez-se soar aos meus ouvidos, quando decidira deslocar até ao bar para mais uma bebida. Olhei na minha direção oposta e encontrei mais um colega de faculdade. Sorri-lhe. 

- Hei, Henrique! Há quanto tempo – saudei-o alegremente. 

- Posso dizer o mesmo! – Retorquiu enquanto me dava um beijo no rosto – O que é feito de ti, rapariga? – Abanei os ombros 

- Ando demasiado ocupada com o meu último ano de faculdade…sabes como é…estágios, relatórios, aulas…pouco tempo livre! 

- Compreendo perfeitamente. Acho que a última vez que te vi foi…no verão? 

- Acredito que sim – Relembrei-me dos últimos momentos em que tivemos juntos e, por momentos, preferia não me recordar. O Henrique é um rapaz incrível e se as coisas tivessem tido outro rumo, talvez estivéssemos juntos. Uns namoriscos entre nós mas que acabou em amizade. No fundo, dou graças por isso pois não haveria a mínima hipótese de haver um relacionamento entre nós – E tu? O que é feito de ti? Não te tenho visto pela faculdade. 

- Pois…não me vês porque congelei o meu último ano – olhei-o surpreendida – apareceu uma oportunidade de trabalho na empresa do meu pai e deixei de ter tempo para me dedicar aos estudos. Pelo menos por enquanto…pretendo acabar a licenciatura. 

- Boa, fico feliz por ti! 

- Obrigada… - Naquele instante a musica tinha mudado e a típica brasileirada fazia-se ecoar naquelas paredes – Que dizes de dançarmos? – Convidou, apanhando-me desprevenida. 

- Hum…dançar? 

- Sim! Andá lá…como nos velhos tempos – O Henrique deve ter entendido a minha apreensão e um sorriso doce abarcou no seu rosto – apenas para matar as saudades. Depois, cada um segue o seu caminho – Ele percebeu o meu receio e fiquei mais descansada por saber que as intenções dele eram apenas aquelas. Dançar e nada mais. De facto, que mal tinha aquilo? Eu sentia-me demasiado alegre para ficar parada num canto qualquer abandonada pela minha melhor amiga que estava sabe-se lá onde. E confesso que queria muito dançar. Precisava de o fazer para ver se o álcool que estava entranhado na minha corrente sanguínea desaparecia à mesma velocidade que sentia a minha cabeça a rodopiar. Sorri-lhe e fomos para a pista de dança. 

Perdi a noção do tempo que ali ficamos a dançar mas sentia-me tão leve que não conseguia parar. Doía-me os músculos da face de tanto sorrir e gargalhar. Ou por pisar os pés do Henrique ou por me segurar em alguém de modo a não cair no chão. Assim fiquei até que o reportório de músicas mudou drasticamente e o DJ achou que seria boa ideia passar músicas românticas. Era a deixa perfeita para abandonar a pista mas a mão quente dele prendeu-me. 

- Prometo que é a última… - sussurrou-me. Senti o meu coração a vacilar. Eu não queria aquilo, principalmente por estar a ter uma espécie de Déjà-vu do passado. Ele dança incrivelmente bem e…Deus do céu que ele sabe como levar uma rapariga à loucura. E eu sei disso por já me ter levado também. Seria a ultima dança e não via nenhum mal nisso mas aprendi que, quando alguém diz que é a ultima…nunca termina bem. Revirei os olhos e nem tive tempo de falar pois já estava a sentir os braços dele na minha cintura a puxarem-me para junto do seu corpo quente. Respirei fundo e rezei para que não percebesse o meu embaraço perante aquela aproximação. Os nossos corpos estavam embalados numa sintonia perfeita ao som da música Perfect do Ed Sheeran. Olhei em meu redor e entendi que eram vários os casais que nos acompanhavam e, pouco a pouco, senti o meu corpo a relaxar e a apreciar a música. Só paramos quando a musica terminou, dando lugar a outra mas não iria permitir dançar mais. Os nossos corpos desprenderam-se e senti a necessidade de apanhar ar. Rumamos até à varanda que estava a três metros de nós e mirei a cidade iluminada que, aos meus olhos embriagados, estava completamente desfocada. 

- Obrigada pelas danças – agradeci 

- Ora essa. É sempre um prazer voltar a dançar contigo. 

- Exceto quando piso os teus pés – conclui e ele gargalhou 

- Faz parte da dança! – Um breve silêncio gerou-se – Estás muito bonita esta noite… - apontou, levando-me a corar. 

- Obrigada – agradeci num sussurro pois já estava a adivinhar o momento seguinte. E não me enganei. Senti-o a diminuir a nossa distância e abanei a cabeça. 

- Sabes, Clara…esta noite fez-me entender que talvez a amizade não seria o melhor para nós. Tu és incrível! – sussurrou, pegando-me pela cintura. Sentia os seus lábios perto dos meus e o meu corpo estremeceu. Eu sabia o que ele ia fazer e, apesar de no meu intimo querer aquilo, sabia que não estava certo. 

- Henrique, não… - tentei impedir e senti os seus olhos cravados nos meus. 

- Porquê? É só um beijo. 

- Nós somos amigos e seremos apenas isso. Estamos a ser levados por uma noite muito boa mas…é apenas isso. 

- Será que é…? – inquiriu, tocando de leve no meu rosto 

- Sim – atirei certeiramente. Naquele instante a minha sobriedade abalou todo o meu cérebro. Tentei empurra-lo mas ele não se moveu. Foi então que senti os seus lábios bem perto dos meus e desviei o rosto – Por favor Henrique…é melhor não. 

- Tens a Certeza, Clara? – Conseguia ver a confusão espelhada nos seus olhos acompanhados de desilusão. 

- Não ouviste o que ela disse? – O nosso momento acabava de ser interrompido pela presença de alguém. Ou melhor…por uma voz grossa e forte. Uma voz que me fez abalar pois eu conhecia-a. Respirei fundo antes de encara-lo e de lhe lançar um olhar incrédulo. E ali estava ele, todo dono de si a segurar num copo de Gin. 

O Rafael. O meu adorado irmão postiço.