Senti o despertador a tocar freneticamente bem junto da minha cabeça. Estremeci só de pensar que já amanhecera e tinha um dia duro pela frente. Tentei não abrir os meus olhos e desejar que o som daquela maquineta irritante não passaria de um sonho qualquer que estivesse a ter. Sim, podia ser, certo? Ainda me lembro de o meu professor de psicologia reforçar a ideia de os sonhos parecerem reais e, portanto, sabia que estava a sonhar. Sorri por dentro pois sabia que ainda não eram seis horas da manhã e que nem tinha de apanhar um autocarro para trabalhar. Só que a minha alegria interior durou pouquíssimo tempo ou não fosse sentir o Jonas a rosnar junto do meu ouvido que mais parecia um latido indolescente. Revirei os olhos. Jonas, o meu cão que já arrastava as pernas da velhice e nem conseguia imaginar como ainda conseguia subir para cima da cama, estava deitado sobre as minhas costas e comecei a sentir a baba dele junto do meu pescoço. Oh Deus!
- pronto Jonas…sai! – virei-me de forma a ficar de barriga para cima e, consequentemente, senti o cão a escorregar para o outro lado da cama. Olhei para o despertador e percebi que eram horas de levantar da cama, fi-lo ainda a tontear pelos cantos do quarto escuro até acender a luz. Iniciei a maratona da habitual rotina: ainda de olhos fechados, pegar na primeira peça de roupa que tinha no armário, vesti-la, preparar o pequeno-almoço, lavar os dentes e arranjar-me. Consegui fazer isso tudo numa hora o que acabava por se tornar num recorde. Por norma, demorava uma eternidade para me arranjar e como resultado final, acabava por sprintar para não perder o comboio até à Universidade. Quando estava junto à porta da cozinha, reparei no bilhete que estava pousado sobre a mesa.
Minha querida, deixei-te o jantar preparado no frigorifico, quando chegares só precisas de colocar no forno.
Beijos da tua mãe.
Respirei fundo e voltei a pousar o papel sobre a mesa. Tinha-me esquecido de avisar que não jantava em casa porque pelo que parece, combinei de jantar com a minha amiga Inês, apesar de não me recordar de o ter feito. O mesmo aconteceu com o lanche que combinei com a Cláudia e que não fui pois estava a trabalhar. Ao pensar nisso reforcei mentalmente a necessidade de comprar uma agenda e começar a apontar as coisas, visto que a minha memória andava com mais furos do que o cano da banca da minha cozinha. Ah! Falando nisso, tinha de arranjar um canalizador antes que o tubo estourasse e houvesse uma inundação na minha cozinha.
Saí de casa e, num passo apressado, fui até à paragem de autocarros sabendo que dentro de poucos minutos, chegaria. Ainda estava escuro e já não me lembrava da sensação de andar de transportes públicos mas, sabendo que o meu carro estava no mecânico, era a única opção. A sorte é que naquela hora os passageiros eram poucos o que permitiu que até Braga pudesse dormitar um pouco, colocando os auscultadores nos ouvidos e embalar-me ao som de The Kodaline.
Braga era uma cidade encantadora, bonita e inovadora mas apenas para quem não vivia ou trabalhava ali. O transito era caótico e as pessoas mal-educadas. Okay, sabia que não era a melhor pessoa para criticar quando tenho o pior feito matinal mas depois de tomar um café isso passava e conseguia ser simpática. Mas não hoje. Particularmente, sentia que cada pessoa que se esbarrava contra mim o fazia de propósito e nem um pedido de desculpas ouvia. Cheguei a pensar se não estaria em Londres – onde as pessoas não são simpáticas – mas o sotaque forte dos bracarenses provava que estava em terras lusas. Saí da universidade e já passava das cinco horas, tentei me deslocar até ao centro da cidade de autocarro mas para aliviar todo o stress acumulado, fui a pé. Uma caminhada de trinta minutos que saberia tão bem e que adorava fazer. Sabia que algumas pessoas me achavam louca por caminhar tanto mas eu adorava caminhar. É o meu antidoto. Que ninguém me criticasse quando era a única forma de descarregar a frustração de um dia péssimo de aulas.
Estávamos em meados de Outubro e era o meu último ano na faculdade. Estava ansiosa para acabar a licenciatura apesar de saber que parte de uma boa vida estava prestes a acabar…Não quis alongar muito com estes pensamentos até porque estava a chegar ao centro quando avistei o meu pequenino a correr e a Inês estava louca atrás dele. Francisco tinha três anos e era o filho da minha melhor amiga. Algo que aconteceu por puro acidente mas acredito que foi a melhor coisa que aconteceu…era o meu sobrinho emprestado mas que amava como se fosse de sangue.
- Hei girl! – acabei por a abraçar fortemente. Já não a via há duas semanas e as saudades eram muitas.
- Olha a minha desaparecida! É sempre bom ver-te! – gracejou enquanto que pegava no meu pequeno Francisco e o enchia de beijos. Após alguns protestos, pousei o meu pequeno no chão e ele continuou a brincar com a bola.
- Como é que estás? Cansada de fazer mudanças? – Inês revirou os olhos. Estava numa fase de mudanças para a sua casa nova, tanto ela como o Pedro decidiram que estava na hora de juntarem os trapinhos e formarem o seu lar. Ficava feliz por ela e sentia que apesar de todo o cansaço, estava feliz.
- Não vejo a hora de puder ver aquela casa direita…nunca imaginei que fosse tão complicado! – desabafou. Começamos a caminhar em direção ao restaurante que ficava a dois minutos daquela zona – o pior é o quarto do Francisco…são muitos brinquedos para arrumar e sinto-me à beira do colapso! – ri-me – a sorte é ter o Pedro a ajudar…
- sabes que também podes contar comigo! Posso estar ocupada com as aulas e trabalho mas arranjo sempre tempo para vocês.
- obrigada Clara, eu sei que sim. E aceito até porque vi um artigo em que comprova a eficácia dos trabalhos domésticos para a perda de peso – desatei às gargalhadas e ela juntou-se a mim.
- Então, conta-me a novidade! – mudou de assunto – qual é a grande mudança da tua vida? – Inspirei fundo e bem devagar antes de anunciar a grande mudança que iria acontecer na minha vida e que, até ao momento, não consigo aceitar.
- Nem vais acreditar, vou mudar de casa! – anunciei imitando uma falsa felicidade por aquilo que acabar de dizer. Olhando para o rosto da minha amiga, vi-lhe confusão.
- wait…como assim vais mudar de casa?
- A minha mãe e o Rogério decidiram viver juntos.
- Mas ele já vivem juntos – contrapôs.
- Sim, vivem juntos mas a minha mãe vai colocar a minha atual casa à venda e querer mudar-se para a mansão do Rogério. Isso implicará que eu irei junto – refutei mostrando o meu desagrado.
- Uau! Onde é que isso é mau? A tua mãe decidiu finalmente seguir em frente e ter um compromisso sério, além que…eles vão se casar.
- Inês, eu vou ter de ir viver com ela! – bufei impaciente. Será que ela não estava a entender o meu problema? O Rogério não vive propriamente a dois minutos do centro mas sim nos confins do buraco mais longe de Braga. Na zona mais periférica da cidade o que eu já não considero que pertença a Braga – vai ser uma mudança na minha vida e, ainda mais, na pior altura. Estou no meu último ano de faculdade e tenho de ter todas as atenções viradas para os estudos, não propriamente para mudanças.
- Clara, vê as coisas pelo lado positivo. Pelo menos terás a melhor vista da cidade e com uma piscina invejável, terás um quarto do tamanho da minha cozinha e sala! – Inês ria-se – vá lá…vais adaptar-te bem.
- é só…estranho, percebes? Depois do divorcio dos meus pais nunca pensei que esta situação fosse acontecer. Sempre imaginei passar a minha vida e ter os meus pais juntos e não deixa de ser estranho ver a minha mãe a refazer a sua vida com outro homem.
- Eu percebo mas isso trata-se de uma fase adaptativa que será ultrapassada – ela tentava-me confortar e sabia que tinha razão.
Tínhamos acabado de chegar ao restaurante e perdemo-nos nas duas horas seguintes com toda a conversa. O sol já se tinha posto quando decidirmos ir embora mas, no momento em que caminhávamos em direção ao carro, o telemóvel da Inês começou a tocar. Era do trabalho e urgente. Enquanto falava com o seu chefe, fui caminhando com o Francisco até que ele observou um pequeno parque infantil e correu até junto dele. Estavam poucas crianças apesar da noite agradável que se fazia sentir, em pleno outono.
- Hei, Francisco, não vás para aí…cuidado – adverti. Ao vê-lo a correr freneticamente para o escorrega, fiquei a pensar nas pessoas que tinham filhos e os deixava brincar quase como se não se importassem com a sua segurança. Pareciam tranquilos enquanto os observavam a correr como “cavalos” e que tinham o perigo mesmo à espreita. Sempre que o Francisco tropeçava o meu coração saltava da boca fora e não parava de dizer para ter cuidado. Os meus olhos não desgrudavam dos dele e sempre que não o conseguia ver, lá estava a correr pelos baloiços até a minha vista o alcançar. Por isso eu não queria ter filhos, o medo seria constante e nunca mais teria uma vida sossegada. Seria uma louca paranoica como a minha mãe e estaria sempre a ligar aos meus filhos quando estivessem fora das minhas rédeas. Por isso…não. Gosto da minha vida de independência e no que respeita a homens só mesmo de curta passagem.
- Francisco! – chamei-o quando me apercebi que estava junto de uma menina que parecia ter mesma idade. Estavam a tentar descer os dois e ao mesmo tempo, o baloiço. Ele era muito teimoso e, vendo que as coisas não estavam a correr bem para o seu lado, levantou-se. Queria dar a vez à menina mas não estava a conseguir sair dali. Quando me preparava para o tirar, vi um vulto masculino a pegar nele a colocar no chão. Inicialmente senti o pânico a instalar mas depressa sosseguei quando entendi que era o familiar da miúda. Agradecida, ela desceu o escorrega e o meu pequeno Francisco juntou-se à miúda.
- Obrigada! – Agradeci gentilmente ao rapaz.
- não precisas de agradecer – a conversa ficou por ali, não fosse o telemóvel do rapaz tocar e todas as atenções estivessem viradas no seu telemóvel. Não demorou mais do que dois segundos para que, gentilmente, ele se despedisse de mim e fosse embora com a miúda, o que foi um motivo de grande tristeza do Francisco. Peguei na sua mão pequenina e fui ter com a Inês que já tinha desligado a chamada.
- Vamos?
- Sim – entramos no carro e seguimos viagem até a minha casa. Despedi-me deles e entrei na solidão das minhas paredes e apenas o latido do jonas se fazia sentir naquela casa. Aproveitei para tomar um duche relaxante e liguei a aparelhagem, deixando-me guiar pelo timbre fantástico de James Bay.
*
1 mês depois….
- Querida, não te esqueças da caixa castanha! – Gritava a minha mãe do quintal. Estava a acabar de empacotar as ultimas caixas antes de deixar na carrinha que chamamos para fazer as mudanças. O tempo tinha passado a voar desde o anúncio da minha mãe sobre a mudança de casa. Nunca pensei que mudar de casa fosse tão complicado e, pior que isso, nem sabia que a minha casa tinha tanto entulho guardado. As minhas costas estavam doridas e suplicavam por uma massagem terapêutica e acabar com as minhas contraturas musculares acumuladas desde que iniciamos o processo da mudança. A casa foi vendida num ápice e o preço até foi bem vantajoso. A minha mãe quis guardar o dinheiro e colocar nas poupanças depois de eu ter recusado, depois de várias discussões, a sua oferta de uma quantia bem farta. A minha mãe justificava-se que estaria a dar-me o dinheiro para usar no que precisasse após o termito da minha licenciatura mas não podia aceitar, de jeito algum. O que iria conquistar seria com o meu suor e esforço, nunca conseguiria suportar a ideia de depender do dinheiro dela, mesmo sabendo que agora ela estaria bem a nível financeiro.
Nesse aspeto o Rogério tornava-se num homem espetacular. Trabalha numa empresa de topo de engenharia civil e construiu um império infinito e dinheiro não lhe faltava. Poderia ser um homem ganancioso e fútil mas era o oposto, a humildade definia o seu caracter e nunca deixou que faltasse alguma coisa à minha mãe e a mim. É uma pessoa preocupada e tem um coração enorme. A minha mãe não se cansa de contar tudo aquilo que de bom fez e continua a fazer. Tem três filhos e perdeu a esposa há doze anos, vítima de cancro e depois disso despojou o luto em ajudar os outros. Bem…e foi numa dessas “boas ações” que conheceu a minha mãe, há quatro anos. Naquela altura ela trabalhava numa empresa que fazia parceria com a Melo de Andrade e construíram umas moradias de apoio a famílias carenciadas. Estiveram dois anos para assumirem a relação com medo do que os filhos pudessem reagir. No caso dele porque eram novos os miúdos e ainda estavam a recuperar a morte da mãe e tinha medo que eles rejeitassem a minha mãe. No meu…bem, no meu caso porque eu sempre fui contra o divórcio dos meus pais e, naquela altura, atribui a culpa na minha mãe e isso deixou marcas na minha adolescência. Ainda hoje ela tem um certo receio de falar neste assunto, como se tivesse prestes a pisar um chão de cristal.
- Clara! – a voz forte da minha mãe despertou destas recordações e acabei de terminar o que faltava. Dez minutos bastaram para estar a colocar a ultima caixa dentro da carrinha e a fechar, de vez, a porta daquela casa que me viu crescer. Senti uma pontada no meu peito ao olhá-la pela ultima vez e nunca pensei que algo material fosse significar tanto para mim. Estava também a “divorciar-me” do meu lar e, naquele instante, senti umas pequenas lagrimas a turvar-me a visão. Okay, não chores Clara! É apenas uma casa…Não. Não é apenas uma casa. É a minha casa. Sempre pensei que a deixaria quando me casasse e não daquela maneira, não de uma forma definitiva.
- Meu anjo…vamos? – a voz suave da minha mãe despertou-se do transe e olhei para ela. Também estava entalada e sabia que aquilo lhe custava.
- Fomos tão felizes aqui, mãe!
- Pois fomos – concordou comigo – e vamos guardar para sempre todos esses momentos. Agora é hora de rumarmos a outro lar e criarmos uma nova felicidade!
Era aquilo que me dava alento. Saber que estava a despedir mas que isso implicaria a felicidade e bem-estar da minha mãe.
- vamos lá! – respirei fundo e, depois de dar as indicações todas ao motorista, rumamos para a zona leste da cidade, onde seria a minha nova casa. Confesso que nunca entrei na casa apesar das fotos que a minha mãe mostrava e apenas de a ter visto do lado de fora. Tratava-se de uma grande mansão apesar de o Rogério apenas viver com dois filhos deles – ainda adolescentes. O caminho foi rápido e em menos de vinte minutos chegamos.
Saímos do carro e só de olhar para aquela fachada já me sentia perdida. Estilo moderno, grandiosa com as janelas grandes e airosas, as varandas em vidro e, num jardim amplo, uma palmeira grande. Fiquei perdida a contemplar uma parte da casa e se achava tudo aquilo ostensioso, nem queria imaginar o resto. Segui as passadas da minha mãe e do motorista, entramos no interior da casa e fomos inundados por um estilo impecavelmente moderno, fino e com um estilo de decoração super moderno. O Hall de entrada era simples mas com um toque requintado. Caminhamos até à sala e mantinha-me perdida pelo que via, sem prestar atenção às vozes que se faziam sentir.
- Deve ser a Clara! – Olhei na direção da voz feminina e igualmente frágil, deparando-me com uma presença de uma senhora que aparentava ter os seus sessenta anos.
- Sim, sou eu – tentei responder com toda a amabilidade mas a minha voz estava rouca.
- Prazer conhecê-la, menina Clara. Chamo-me Olívia e sou a governanta da casa. Já trabalho para esta família há mais de trinta anos. Estou aqui para servi-la e à sua mãe também. Qualquer coisa que precisarem, estarei disponível para fazer e ajudar! – Oh, Deus! Uma governanta? Eu teria alguém que me faria o jantar, lavava a roupa…fazia-me tudo? Eu queria agradecer a sua amabilidade mas, de facto, a minha garganta atraiçoara-me. Só fui capaz de soltar um tímido obrigado. Não poderia esquecer-me de falar com a minha mãe a esse respeito pois não poderia suportar ter alguém que fosse minha criada. Eu sempre cozinhei para mim. Nem a minha mãe era a minha “escrava”.
Após conhecer a Olívia, foi a vez de conhecer os meus irmãos. Ou melhor…”meios irmãos”. Madalena, que tem 12 anos e Duarte com 15 anos. Dois adolescentes super educados e envergonhados. Ou pelo menos o Duarte que se mostrava mais tímido por ter duas estranhas a a viver na sua casa. Já Madalena encontrava-se solta e com uma empatia visível. Abanei a cabeça ainda atordoada com estas mudanças drásticas…Ainda estou a sofrer as mazelas de mudar de casa e não me sinto preparada para esta avalanche de ter uma nova família e sentir que ganhei dois irmãos. Passei vinte e um anos da minha vida apenas a saber o que é ser filha única. O que é suposto fazer quando temos irmãos? Protege-los? Ensinar nos deveres de casa? Leva-los à escola? Suspiro fortemente. Sinceramente, não sei o que fazer porra nenhuma!
*
Dois dias se passaram após a nossa chegada à nova casa e ainda não sabia como apelidar esta nova fase. Entre correrias para a faculdade e chegar a casa, jantar, tomar banho e fazer trabalhos, pouco tempo sobra para refletir. Ainda me sinto uma estranha e confesso que perco-me no caminho da sala para a cozinha. A casa é grande apesar da sua simplicidade. Noto o esforço abismal do Rogério em garantir o nosso conforto e bem-estar e o ambiente, apesar de estranho, é leve. Confesso que ter dois adolescentes em casa também ajuda a tornar o ambiente apaziguável e com gargalhadas à mistura.
Hoje decidi ir até à cozinha, após o almoço, tentar ajudar a Olívia. A minha mãe estava a trabalhar e não tinha aulas. Preferi ficar por casa e fazer os trabalhos no meu quarto.
- Precisa de ajuda? – Entrei timidamente na cozinha e deparei-me com a figura de Olívia junto da banca. Assim que deu pela minha presença, sorriu e mostrou-se admirada.
- Oh…Olá Clara! Por aqui?
- Sim. Vim até aqui ver se precisava da minha ajuda! – Ela sorriu, como se tivesse dito a coisa mais estapafúrdia da vida.
- Obrigada mas esse é o meu trabalho.
- Eu sei mas detesto estar aqui e não ajudar. Isso não faz parte do meu feitio…
- Eu sei que sim. Consigo ver que é uma rapariga trabalhadora mas não precisa de fazer estas tarefas domésticas. Aliás, eu sempre tratei disso. É com imenso gosto que o faço – respondeu com um sorriso amável e doce. Só conhecia Olívia há dois dias e já a sentia como uma presença familiar. Consegui ouvir um barulho de carro no exterior e portas a abrir, juntamente com vozes distorcidas.
- Posso, pelo menos fazer-lhe companhia?
- Claro que sim! – Respondeu, lançando-me um sorriso admirável. Parecia surpreendida pela minha atitude – mas não tem de estudar?
- Tenho mas antes de começar a fazer, preciso de uma pausa e…confesso que falar com as pessoas ajuda-me a relaxar e ter inspiração para trabalhar!
- Está a estudar para ser enfermeira, não é?
- Hum-hum – acenei com a cabeça – estou no meu último ano de licenciatura.
- É uma profissão muito nobre – dizia-me enquanto guardava a loiça nos armários – e nem qualquer pessoa está apta para o ser.
- É verdade que exige muito pois estamos a tratar da saúde das pessoas. Temos de saber tantas coisas! – confessei – e sei que vou acabar o meu curso sem saber metade! Às vezes tenho medo de não saber como tratar de um utente – Olívia deixa de arrumar a loiça e centra a sua atenção em mim.
- Sentir medo faz parte e é bom, sabia? Deixa-nos mais despertos e atentos. Não se sinta aflita por sentir medo. Ainda é jovem e acredite que a experiencia lhe trará a sabedoria que procura…A ciência é importante e os conhecimentos que vocês aprendem também o é mas sabe o que é mais importante? – ela não me deixou responder – é o que manda aqui – responde apontando para o coração – ser enfermeira, significa ser bondosa, humilde, ter compaixão pelo próximo. Isso é meio caminho andado para saber cuidar dos utentes. Não seja como aqueles profissionais que só o são por causa do estatuto e do dinheiro…podem salvar vidas mas não sabem salvar almas! – As suas palavras tocaram-me. Ao olhar para as suas rugas, percebi que cada uma significava sabedoria e muita experiencia de vida.
- Assim espero ser! – respondi-lhe. A nossa conversa tinha sido interrompida pela chegada de alguém à cozinha. Uma voz masculina e jovem despertou a minha atenção. Olhei de soslaio para aquela presença nova e totalmente desconhecida para mim. Um rapaz alto e jovem aproximava-se de Olívia, dando—lhe um beijo na sua bochecha.
- Olá Olívia! – saudou-a.
- Rafael! Finalmente que chegou! Porque não disse que chegava hoje? – Ele encolheu os ombros
- Quis fazer surpresa. – Olívia abanou a cabeça
- O seu pai sabe da sua chegada?
- Saberá…quando chegar – respondeu enquanto pegava numa maçã da fruteira. Até ao momento não tinha reparado na minha presença, apenas no momento em que pegou num guardanapo – que estava ao pé de mim – olhou-me. Um olhar rápido e totalmente despromovido de curiosidade em saber quem eu era. Olívia pigarreou a sua voz.
- Rafael – ela suspirou devagar e pesarosamente – Esta é a Clara, a filha da Helena – Olívia tentou apresentar-nos mas notava na sua voz algum receio. Ele olhou-me de soslaio e deu uma dentada na maçã.
- Que Helena? – inquiriu enquanto mastigava.
- A Helena, a namorada do seu pai – relembrou-o. Ele deu outra dentada na maçã enquanto eu e a Olívia o olhava-mos. Bastaram alguns segundos para sentir os seus olhos postos nos meus, transpondo um olhar gélido e despromovido de qualquer sentimento.
- Então tu é que és a minha nova irmãzinha? – inquiriu com ironia. Senti os pelos dos braços a eriçarem ao sentir cada ponta de ironia.
- Rafael! – Olivia repreendeu-o, mostrando-se acanhada por perante falta de educação da perde dele.
- O que foi, Olivia? Não disse mentira nenhuma. Se a mãe dela namora com o meu pai, significa que somos irmãos. Quer dizer...irmãos postiços – Ele soltou um sorriso mas que era tão falso como o seu caracter – Mas não te preocupes – refutiu olhando-me – para mim não é prazer nenhum conhecer-te. – Senti os meus olhos a abrirem-te perante o espanto daquilo que acabara de ouvir. O choque era tremendo porque não me lembrava de a minha mãe falar que existia naquela casa um ser com tanta falta de bom senso como ele. Nem sequer me lembrava que o Rogério tinha um filho mais velho. Tão depressa falou aquilo como desaparecera da cozinho como se não se tivesse passado nada. Como se fosse tão normal tratar as pessoas abaixo de lixo. Olhei para Olívia e senti o seu olhar em baixo, completamente envergonhada por aquela situação.
- Desculpe menina Clara por esta situação desagradável! – a sua voz transpunha angustia – aposto que o Rafael não disse aquilo por querer…
- Não tem de pedir desculpa. – finalmente ganhei coragem de falar – a culpa não é sua. Ele é que foi…mal educado.
- Ele ainda não se habituou a toda esta situação…o facto de o pai dele ter seguido enfrente e encontrado um novo amor. Mas ele vai acabar por aceitar. Só precisa de…tempo. – Acabei por abanar a cabeça e pensei nas palavras de Olivia e se até ela acreditava no que dizia. Aquele olhar frio dele dizia-me o contrario. Ele não aceitava a relação do seu pai com a minha mãe e não iria aceitar, eu percebia isso e tinha essa impressão. Raramente me enganava no que dizia respeito aos meus pressentimentos mas, pela primeira vez na minha vida, talvez me enganasse. Mal eu imaginava como estava enganada…mal eu imaginava em como todos os meus pressentimentos fossem mudar.
Em como a minha vida iria mudar.
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