- Precisas de alguma coisa? – A voz forte de Henrique fez-se soar, acabando com qualquer momento afetuoso entre nós os dois.
- Que faças o que ela te pediu – Rafael respondeu como se fosse a coisa mais óbvia, no seu tom de voz presunçoso mas grave.
- Não te deves meter onde não és chamado – Neste momento os dois estavam cara a cara e senti uma súbita vontade de vomitar. Queria chama-los à razão mas sentia-me sem forças. Tudo isto efeito do álcool.
- Não é bem assim…ela pediu para te afastares e tu não estavas a respeitar o pedido dela.
- Meu..Quem és tu para vires aqui e dizeres o quer que seja? Baza daqui.
- Sou mais do que tu pensas
- Rafael…por favor – supliquei. De facto, só me faltava que me acontecesse isto – vai-te embora.
- Ouviste? Sai daqui, parvalhão.
- Eu vou embora mas vens comigo…lembras-te? – os meus olhos esbugalharam com aquilo que acabei de ouvir. Eu sabia que não estava cem por cento sóbria por todo o álcool que ingeri mas…será que ele estava consciente daquilo que acabou de dizer? Ou melhor, porque raio ele estava aqui? Sentia-me confusa.
- Tu conheces este idiota? – a voz do Henrique soava aos meus ouvidos mas estava tão atordoada que não fui capaz de lhe responder imediatamente.
- Claro que conhece – respondeu o Rafael – Nós somos irmãos, vivemos na mesma casa – Eu não queria acreditar naquilo que me estava a acontecer…
- Irmãos? – Henrique gargalhou – A Clara não tem irmãos.
- Aí é que te enganas. Tem três irmãos… - notei alguma impaciência no Henrique e até eu estava impaciente com aquele momento absurdo.
-Este cretino anda a sonhar!
- É verdade – falei – é uma história longa… - não me sentia capaz de explicar-lhe a nossa história familiar. Só queria sair dali o mais rápido possível.
- Não deverias voltar a chamar-me cretino – avisou lançando um olhar furioso.
- Se não, o que me vais fazer, hum? Não passas de um betinho ricaço e mimado a usufruir da boa vida que tem – atirou sem demoras. Seu eu estava a achar aquele momento ridículo, aquela resposta por parte do Henrique deixou-me de boca aberta. Entendi que aqueles dois conheciam-se e não nutriam um sentimento bom entre ambos. Apercebi-me que numa fração de segundos, Rafael pousa o copo sobre o muro e encara-o ainda com mais fúria para que, de seguida, desse um murro no rosto do Henrique. Soltei de imediato um grito.
- Rafael! – Gritei – para!
- Queres saber o que te vou fazer? – Recuperando o murro que acabara de levar, o Henrique levantou-se do chão e sem demoras, empurra-o, abalroando-o para cima da mesa que estava ao pé da porta. Ajoelhando-se no chão, leva o seu punho até ao rosto dele, dando-lhe igualmente um murro. Não sei como consegui chegar ao pé deles mas tentei separá-los, em vão. Naquele instante fiquei completamente sóbria e não havia mínima hipótese de restar um pingo de álcool no meu sangue, perante a adrenalina que estava a sentir. Alguém juntou-se ao pé de nós e conseguiram separa-los. Ambos encontravam-se a sangrar mas a ira faiscava dos olhos de cada um.
- Parem os dois! – gritei – que absurdo é este?
- Esse filho da mãe merece que parta o rosto todo – gritava o Henrique
- Ninguém vai bater em ninguém! Chega disto! – Se imaginasse que a minha noite acabaria com um rapaz que já namorisquei e não o via há meses e o meu irmão postiço que me odeia, os dois à pancada por minha causa, acharia que estava louca e teria de ser internada. Deus do céu! O que tinha sido isto? À medida que mais pessoal se juntava, na medida de saber o que se tinha passado, já eu estava a correr pela sala fora. Para mim, a noite tinha terminado. Não sabia onde tinha a minha bolsa, não tinha o meu telemóvel comigo e não sabia onde estava a Inês e não sabia como ia embora! Realmente…eu merecia. Bufei impaciente e tentei procurar pelo menos uma das opções. Procurei-a na esperança de a encontrar mas sem sucesso. Até que alguém me informa que ela foi-se embora, depois de ter vomitado quase todas as casas de banho e, de forma a prevenir um possível coma alcoólico, alguém a levou até casa.
Boa. Até a minha melhor amiga tinha perdido naquela noite. Saí do edifício e caminhei até junto do parque estacionamento. De facto, não tinha motivos para o fazer pois não tinha as chaves do carro mas precisava de apanhar ar fresco. Caminhei sem destino e só parei quando entendi que estava ao pé do meu carro. Fiquei a olhar para ele numa tentativa falhada de me lembrar onde raio tinha colocado a minha bolsa. Respirei fundo, pela milésima vez naquela noite. Que raio… convivemos há quase um mês na mesma casa e só sabe me tratar mal e hoje deu-lhe para se armar em irmão protetor? Possivelmente a lucidez é algo que não faz parte da sua personalidade mas não poderia ficar surpreendida perante a falta de convívio com ele, de maneira a julgar o seu feitio.
Tentei abrir o carro mesmo sabendo que estava a ser uma idiota. Claro que o carro que não ia abrir! Eu não tinha a chave. Só me apetecia chorar. Como era suposto voltar para casa quando não tinha o meu telemóvel nem as chaves do carro? Suspirei e deixei a minha cabeça descair sobre o vidro do carro, à espera que alguma espécie de milagre acontecesse.
- Sai daí. Anda comigo e vamos para casa – Impressionante como eu não precisava de erguer a cabeça para saber quem estava ali. Pela segunda vez naquela noite, detetei-lhe a presença pela sua voz grossa e rouca. Ergui, depois de alguns segundos, o meu rosto encarando-o. Se eu não estava com bom aspeto, o Rafael muito menos. A camisa fora das calças e o seu rosto machucado dava-lhe um ar delinquente e cansado.
- Engraçadinho…eu não preciso da tua boleia.
- Então porque é que estás a tentar abrir o carro sem chaves? – lancei-lhe um ar furioso.
- Porque não sei das minhas chaves – confessei em lamúria
- Mesmo que as tivesses, não apresentas condições de conduzir – atirou com azedume.
- eu estou bem – atirei sem demoras. Eu sabia que tinha bebido mais do que o habitual mas naquele momento sentia-me bem e em perfeitas condições de conduzir – não preciso da tua boleia.
- Okay…como preferires – refutou, passando por mim e caminhar até em direção do seu carro. Ele até podia estar enganado em relação às minhas condições mentais para conduzir mas tinha de admitir que as minhas opções para irem embora, eram nulas. Podia voltar lá dentro e procurar a minha bolsa mas eu só queria ir embora, enfiar-me na minha cama e dormir desesperadamente. Esquecer aquela noite e bater na minha amiga por me deixar ali sozinha. Cruzei os braços e segui-o. Eu não tinha outra opção e escolher a sua boleira era a única coisa que me restava, sendo que morávamos na mesma casa. Entrei para o carro e notei o seu olhar surpreso. Se ele queria falar alguma coisa, optou por não fazê-lo e agradeci, mentalmente, por isso. O caminho até casa foi feito num silêncio inquietante mas não tinha forças para dirigir uma palavra que fosse. Acho que ele sentia o mesmo.
Assim que chegamos a casa, sai do carro e num ápice a sua figura desaparecera da minha frente, rumando ao seu quarto. Revirei os olhos e pensei que toda aquela falsa amabilidade em proteger-me, tinha acabado. Só que as perguntas não saiam da minha cabeça e o Rafael devia-me uma explicação. Ele meteu-se na minha vida sem ter qualquer confiança ou justificação para tal. Mas porquê? Não ia deixar este assunto para amanhã e, por isso, saio do meu quarto disparada, abro a porta do quarto dele sem pedir licença e só parei quando me deparei na sua frente. Ele não esperava ver-me e notei isso pelo olhar surpreso. Estava em tronco nu apenas com as suas calças de sarja beges.
- Quem te deu autorização de entrares no meu quarto?
- Ninguém. Nem preciso! - Ele aproximou-se de mim, ficando a escassos metros de distância. Percebi que tinha pisado uma linha em entrar no seu quarto sem permissão. Mas sinceramente? Pouco me importava com isso.
- O que é que tu queres?
- Vais-me explicar que raio se passou na festa? – Perguntei, cruzando os braços, à espera de respostas para as minhas inquietações.
- Não te devo explicações.
- Muito bem…não saio daqui enquanto não falares. Nem que me expulses a pontapé – disse, firmemente. Ele percebeu que não ia arredar pé enquanto o assunto não fosse abordado.
- Só te fiz um favor.
- Um favor?
- Sim. Aquele sacana ia beijar-te e podia jurar que estavas a recusar – abri a boca perante o meu espanto.
- Tu por acaso conheces o Henrique para julga-lo? Ou melhor, dizeres que eu ia recusar um beijo dele?
- Conheço o teu amigo o suficiente para saber o tipo de estirpe dele. E vais negar que não o querias beijar?
- Estavas a espiar-me?
- Achas que faria isso? Apenas passei por ali, vi-te com ele e percebi o suficiente. Aliás, somos irmãos não é? É suposto cuidarmos um do outro, certo? – Inquiriu com escárnio na sua voz
- Tens uma fraca maneira de mostrares a tua proteção – acusei-o. Senti-o a exasperar-se. Passava as mãos pelo rosto ferido e, sem contar, o seu lábio começou a sangrar. Ao notar isso, passou a mão de forma a limpar o sangue mas esse gesto só fez aumentar o seu fluxo.
- Porra! – praguejou – já tens a tua explicação, podes ir embora? – pediu-me à medida que o controlo se ia perdendo nele.
- Podes crer que vou – atirei sem demoras. Abandonei o quarto dele, entrei no meu e foi ao pé do meu closet para buscar o meu saco de primeiros socorros. Se tem algo que nunca pode falhar a alguém que está prestes a tornar-se enfermeira, é um estojo de primeiros socorros pois é a nossa ferramenta básica e aliada. Bastaram alguns segundos para detetar o que precisava e deslocar-me, novamente ao quarto dele. Agora tinha um pano qualquer a tapar a boca mas percebi que o sangue escorria. Podia jurar que vi os seus olhos revirarem assim que me viu mas pouco me importei, no final de contas, os enfermeiros não podem descriminar raças, géneros e feitios bestas como neste caso.
- O que foi? – Perguntei ao reparar no seu olhar impávido. Enquanto isso preparava o gelo improvisado e umas compressas com betadine.
- Eu não preciso de ajuda – Ignorei-o pois sabia que não era o caso. Ninguém, no seu perfeito juízo, se recusa a negar ajuda quando tem a cara esmorrada.
- Eu não pedi a tua permissão – refutei à medida que me ia aproximando dele – aqui – ordenei para que ele se sentasse junto à sua secretária. Para minha surpresa ele acarretou ao meu pedido sem contestar. Encostado na sua secretária, dava-me fácil acesso ao seu rosto sem ter de me colocar em bicos de pés.
- Se existe coisa que tu fazes bem, é não pedires permissão – resmungou baixinho – Au! – gemeu assim que coloquei o betadine para desinfetar o lábio e limpar o restante sangue do seu nariz. Olhei-o de soslaio.
- E ainda dizes que não precisas de ajuda – retorqui, aplicando o gelo pelo lábio – mas não te preocupes, eu não falo sobre este assunto com ninguém.
- Que assunto? – Perguntou num sussurro. Sentia os seus olhos cravados em mim mas não sentia capaz de o olhar.
- Que tratei das tuas mazelas. Mesmo que seja isso que os irmãos fazem uns aos outros. – se até ao momento sentia-o a olhar para mim, neste momento poderia jurar que toda a sua atenção estava vidrada em mim. Sentia-o tenso. Os seus músculos estavam contraídos.
- Tu não és a minha irmã – atirou com azedume
- Tens razão. Somos irmãos postiços – Desta vez encarei-o – o teu pai e a minha mãe estão juntos, quer tu queiras ou não – Ele abanou a cabeça.
- Pois…se eu pudesse eles não estariam juntos – confessou. Aquele comentário deveria ferir-me pois ele estava a referir-se à minha mãe mas, no lugar disso, senti-o vazio como se tratasse de um desabafo perdido numa alma tão distante. Olhei-o atentamente. Os nossos pais estão juntos porque, por infelicidade do destino, a sua mãe tinha falecido. De outra forma, julgo que não seria possível que neste momento pudéssemos ter esta conversa. Acredito que ainda esteja a passar por um dor que, muito sinceramente, espero não ter de passar por ela. Mas a vida segue e ele terá de seguir com a sua.
- Acredito que não seja fácil para ti…não teres a tua mãe. Pelo menos fisicamente – disse num murmuro. Tinha receio de que, ao falar na mãe dele, pudesse sentir ira e raiva, que pudesse ficar agressivo pois sabia que estava a pisar um terreno muito frágil. Olhei nos seus olhos e vi-lhe pânico. Podia senti-lo.
- Não fales da minha mãe – pediu num sussurro quebrado. Retirei-lhe o gelo do rosto e retrai-me.
- Desculpa.
- Não peças desculpa. Apenas não fales nela – sentia a sua respiração ofegante e os seus olhos obscuros. No entanto, via qualquer coisa por detrás daquela armadura toda…aqueles grandes olhos castanhos escondiam muita coisa e não podia ter apenas escuridão. Tinha mais do que isso…
Abanei a cabeça e decidi que não poderia fazer mais nada ali. Deixei o saco do gelo em cima da secretária.
- Continua a colocar o gelo. Amanhã vais acordar com o rosto inchado e as perguntas vão surgir… - Não obtive resposta por parte dele, apenas a sua ignorância por qualquer preocupação da minha parte. Já estava com a minha mão sobre a maçaneta da porta, quando me virei para trás, encarando-o.
- Não deves guardar só para ti a tua dor. Partilha-a…só assim seguirás enfrente – Posto isto, saio daquele quarto, achando que aquela noite não poderia dar mais. Fui até ao meu quarto num suspiro pesado e comecei a sentir as dores musculares e cansaço. Olhei para o relógio e percebi que passava das quatro horas da madrugada. Retirei o vestido e não fui capaz de fazer mais nada…apenas me deitei e deixei ser embalada por um sono profundo e merecido, deixando que as lembranças daquela noite assombrassem os meus sonhos mais profundos.
*
Os dias foram passando e fico surpreendida com a minha capacidade de aguentar o meu estágio clinico e aulas simultâneas. Chego ao final do dia estafada e muitas das vezes não consigo ter forças para fazer relatórios. Esgotei com o limite de cafeina que o meu corpo aguenta e já me sinto taquicardica de manhã até à noite. Sinto o meu cérebro cansado e já não sei o que faço, em grande parte do tempo. Deixo tudo espalhado e esqueço-me de onde coloco as coisas. Estamos em Novembro e daqui a três dias tenho a prova final do semestre. A derradeira e mais dura das provas que me dará carimbo para terminar a minha fase como aluna. Ou pelo menos…no que respeita a ter aulas teóricas. O próximo semestre será inteiramente prático e não terei mais nenhuma oportunidade de repetir este exame. Ou passo…ou tenho o meu ano estragado. Arrepio-me só de pensar nessa possibilidade. Tenho tudo tão delineado e nada pode correr mal.
- Meninos, venham para a mesa! – A voz doce da Olívia ecoou pela sala e, num ápice, a Madalena e o Duarte correram para a sala de jantar. Decidi dar uma pausa ao meu estudo, porque necessitava disso, e acabei por ajudar a Madalena na disciplina de Português. Acabamos por criar uma relação boa e apaziguadora e com o Duarte também. Já se tinha criado um hábito de os ajudar apesar de ambos terem uma explicadora. Acabava por ser uma maneira de criarmos uma relação e conceção fantástica. O mesmo não diria do Rafael que, depois da festa, raramente trocamos uma palavra.
- O que é o jantar? – A voz frenética de Madalena irrompeu pela sala, enquanto nos sentávamos. Para minha surpresa o primeiro a chegar tinha sido o Rafael, o que não era um hábito. Por norma, era a Madalena a ganhar a corrida até à mesa mas hora era exceção. Após me sentar, chegou o Rogério e a minha mãe. Olhei-os e notei a cumplicidade que os embalava. Ficava mesmo feliz por eles.
- Peixe grelhado com batatas assadas.
- Hum, não gosto de peixe – resmungou o Duarte.
- Pois mas o peixe é essencial para mantermos uma alimentação saudável – contrapôs o Rogério
- É verdade. O peixe tem nutrientes essenciais para um bom crescimento. E vocês estão numa fase importante de crescimento e necessitam de todos os nutrientes para tirarem boas notas - contrapus
- É isso que comes para seres enfermeira? – Gargalhei perante a pergunta da Madalena
- Hum…como muito peixe e não só. Aliás, tenho uma alimentação equilibrada. Como um pouco de tudo mas sem excessos.
- És como o Rafael – Desta vez foi Duarte que tomou a palavra – tem de comer comida saudável e que não presta por causa do Hóquei. Isso é muito…mau! – Gargalhei as suas expressões inocentes. Todos nos acompanharam e, de soslaio, percebo que o Rafael solta um sorriso tímido e trocista. Acaba por lhe atirar um pequeno pedaço de pão.
- Engraçadinho…vais pedir para te levar mais vezes para comer cachorros quentes – ameaçou o pequeno irmão, num tom fingido de ofensa.
- Rafael… - O Rogério tomou conta do assunto – Estávamos a pensar em ver o teu próximo jogo, quando jogarem em casa. Vi no calendário que calha a um domingo à tarde e seria um programa perfeito para ser feito em família. Todos juntos – Notei o receio do Rogério em falar pois percebi que, o facto de dizer que era um programa familiar, incluir-me-ia e à minha mãe também, o que seria uma estreia. Estamos a viver juntos há dois meses e todas as tentativas de um programa familiar foram deliberadas pela ausência dele. E eu percebia o quanto essa atitude magoava o Rogério. Um certo silêncio gerou-se na sala à espera de uma resposta por parte do Rafael.
- Façam como entenderem – respondeu num encolher de ombros – eu estarei a jogar na mesma.
- Vale…será um dia ótimo – uma réstia de esperança alcançou o olhar de Rogério mesmo sabendo que era um passo muito pequeno e que poderia dar em nada. Mas ele tentava.
- Será a oportunidade ideal sendo que deve ser dos meus últimos domingos disponíveis… - resolvi falar – pelo menos até começar o meu estágio e de certeza que não surgirá mais dias disponíveis.
- Quando inicias o teu estágio no Hospital de Braga a tempo inteiro?
- Em janeiro. Até lá, terei exames e uma pausa até começar.
- Quando deres por ti…estarás com o diploma na mão e a trabalhar!
- É verdade – sorri ao sonhar com esse dia – mal posso esperar para que esse dia chegue.
- Quais são os teus planos para depois da licenciatura? – suei. Queria muito evitar aquela pergunta pois ainda não estava preparada para anunciar os meus verdadeiros planos. Sabia que não a poderia evitar mas aquele momento não era o indicado para dar novidades, sem falar que a primeira pessoa a saber teria de ser a minha mãe.
- Ainda não sei muito bem… - optei por responder.
- Era tão bom que ficasses ao pé de nós – desta vez foi a minha mãe que tomara a iniciativa de falar. Olhei-a e um sorriso nada genuíno deslumbrou o meu rosto.
- Londres fica a dois passos daqui – Todos os olhares se centraram numa só pessoa. Nele. O meu sangue gelou. Olhava-o impávida. Ele sabia dos meus planos para Londres. Como era possível? Ninguém sabia disso.
- O queres dizer com Londres? –a minha mãe sentia-se confusa
- A Clara não foi aceite no St- Thomas Hospital? Pelo menos era o que a carta dizia – a naturalidade com que afrontava toda a gente com aquela notícia, deixou-me sem chão. Ele sabia da carta. Ninguém a tinha visto e nem eu me lembrava que recebera uma carta registada que tinha sido aceite para um estágio no hospital mais prestigiado de Londres.
- Isto é verdade, filha? – Ver o espanto e medo no olhar da minha mãe, deixava-me angustiada.
- Eu…não era assim…não é verdade….Quer dizer…
- Vais para Londres?
- Eu ia falar disto mas não desta forma – acabei por dizer sendo dominada pelo nervosismo e fúria. Olhei para ele e via-lhe espanto mas eu só lhe conseguia lançar fúria. Ele não tinha o direito de fazer isto – Eu cheguei a fazer candidatura para o hospital de Londres por ser um objetivo depois da licenciatura. Recebi a confirmação na semana passada mas queria esperar o momento oportuno para anunciar.
- Então, queres imigrar é isso?
- Eu não sei…eu preciso de pensar com tempo –ripostei deixando o meu nervosismo vir à tona – como é que soubeste ? – perguntei-lhe deixando que a minha raiva fosse lançada em cada palavra dita.
- Tu tinhas a carta aberta em cima da banca da cozinha! – defendeu-se – qualquer pessoa podia ter lido! Se não querias que não se soubesse, deverias saber guardar melhor os segredos – atirou com azedume.
- Isso não dá o direito de falares da minha vida pessoal sem minha permissão!
- Meninos… - O Rogério tentou apaziguar o mau ambiente que estava gerado sobre a mesa. Percebi que não era assunto para ser discutido ali e por isso mesmo acalmei-me, pelo menos por enquanto. Nada conseguia deter a desilusão estampada no rosto da minha mãe mesmo que ela tentasse esconder.
- Desculpem… - O resto do jantar foi passado com conversas curtas e bastou o ar jovial da Madalena ou as conversas sobre as aulas do Duarte, para esquecer o que se tinha passado. Para eles até pode ser o suficiente mas não para mim. Não consigo deixar de pensar no descuido de deixar a carta à vista de todos mas, pior que isso, foi ter o Rafael a cravar este punhal pelas minhas costas. Não deveria estar surpreendida pois só mostra o caracter dele e o quanto ele odeia-me. Por isso é que fez isto, para me humilhar. Ele sabia o que estava a fazer e isso só me deixa com um sentimento de culpa ainda maior.
Assim que a refeição terminou, decidi sair da mesa e pedi para falar com a minha mãe. Ela merecia uma justificação minha.
- Mãe… aquilo que ouviste sobre Londres. Eu…desculpa. Não queria que fosse desta forma e se eu não te falei nada antes foi porque… - respirei fundo – ainda não tinha certezas se queria ou se me iriam aceitar. Não podia abordar um assunto tão sério se não tivesse certezas que iria dar certo – Ela olhava-me atentamente e notava um pouco de tristeza no seu olhar.
- Clara, confesso que fiquei dececionada por não teres falado antes. Mesmo que não desse certo ou não te aceitassem, eu estou aqui para te apoiar.
- Mas eu… - ela interrompe-me
- Ouve – pediu – Tens de aprender que não podes contar com as pessoas apenas para os bons momentos nem muito menos partilhar as vitórias. Aprende a partilhar as derrotas também porque não é o facto de esconderes as tuas dores que faz de ti mais fraca.
- Eu sei… - Baixei o olhar. A minha mãe tinha razão.
- Desde quando é que desejas viver para Londres?
- Eu sempre quis algo diferente para a minha vida e quero aproveitar enquanto posso…enquanto não tenho marido e filhos. Quero dar o melhor de mim e ter uma aprendizagem diferente, entende? Desculpa…mais uma vez – pedi. Eu via no seu olhar um desalento que me fazia doer o peito. Odiava aquela sensação. Sentia-a a apertar as minhas mãos.
- E eu só quero que sejas feliz. Da mesma forma que deste força para voltar a encontrar a felicidade mesmo que isso dependesse um pouco da tua infelicidade, eu desejo-te o mesmo!
- Mãe eu estou feliz por estares assim, tu sabes… - ela voltou a interromper-me.
- Eu sei. Mas também sei que não querias viver aqui e que no fundo tu não estás inteiramente bem nesta casa, nesta nova vida…eu conheço-te Clara. E sei reconhecer o esforço que fazes para não transparecer isso! Por isso…se a tua felicidade depende de vieres em Londres ou em outra cidade, eu serei a primeira a apoiar-te da mesma forma que te apoiarei caso falhes. Não tenhas medo, apenas voa! – Senti-me emocionada com as suas palavras e as lágrimas turvavam-me a vista.
- Oh mãe, obrigada! Eu adoro-te muito – abracei-a e senti que nada de mal me poderia acontecer enquanto tivesse o seu conforto e abraço. Ficamos por uns momentos assim, até que a sentir a desprender-se de mim.
- Acho que está na hora de teres outra conversa… - Inicialmente não entendi o que queria dizer mas após ver a figura do Rafael a escassos metros de distância, entendi as suas palavras. Após nos deixar sozinhos, decidi falar.
- Não tinhas o direito de fazer aquilo – a minha voz era um murmuro mas não pretendia eleva-la.
- Pensei que fosse um assunto público – tentou desvalorizar.
- A minha vida não é um assunto público – ripostei
- Desculpa – pediu erguendo as mãos no ar – a minha intenção não era causar este alarido todo. Não sou esse tipo de pessoa.
- Pois não…és mais do tipo de pessoa que gosta de humilhar, não é? Deves sentir-te contente pela humilhação – notava confusão no seu rosto
- Achas que fiz aquilo para te humilhar?
- Por que outra razão farias? Não acredito na tua versão de ser intencional. Afinal tu odeias-me!
- Eu não te odeio! – Ripostou elevando o seu tom de voz. Notei seriedade nas suas palavras mas não queria acreditar nisso
- Tu odeias o facto de estar a viver na tua casa e sinto desde o início que descarregas em cima de mim a tua frustração! – Já não conseguia aguentar a calma.
- Isto não tem nada a ver contigo! – gritou-me – Não foste tu que quiseste vir para aqui viver nem tão pouco impingiste a tua presença na minha vida!
- Tu és assim porque não sabes aceitar que a vida continua. Mas não te preocupes que não precisas de conviver comigo por muito tempo. Apenas uns meses até sair definitivamente daqui! – Um Sorriso escabroso invadiu o seu rosto
- Tu até podes ir para Londres e nunca mais voltares, até podes ficar aqui todos os dias durante toda a tua vida mas não será isso que fará com que as coisas voltem a ser o que eram aqui. Não é a tua presença ou a da tua mãe que me afeta. Vocês até podem ir embora e o que importa? Nada disso apagará o que sinto – Ele estava descontrolado – Nada disso trará a minha mãe de volta… - disse num sussurro envolto de tanta dor. Numa fração de segundos fechei os olhos e uma pequena dor no peito avassalou-me. Não consegui dizer nada. Vi-o a desaparecer pela escuridão até ao seu quarto e só o bater estrondoso da porta, me fez despertar daquele transe.
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