terça-feira, 28 de abril de 2020

Capitulo 4

Quando entrei na faculdade sempre imaginei como seria a minha vida e quais as sensações vividas enquanto profissional. Será que era como nos filmes? Correr de um lado para o outro, aquela azafama em que não teríamos tempo de parar, viveríamos apenas e só para o trabalho? Algo no meu interior dizia que isso era apenas uma pequena parte das vivências enquanto enfermeira e que existia algo bem mais transcendente Bem…não diria que o meu coração estava completamente enganado mas até ao momento, não estava certo. Nem lá perto. Quer dizer…nem tudo era assim tão mau e justificava os maus momentos ao facto de ainda ser estudante. Sentia-me exausta…O meu estágio no serviço de neurologia tinha começado há três semanas e faltava apenas uma para terminar. Eramos um grupo de três alunos com um enfermeiro responsável. A azáfama era muita e tinha dias em que me sentia a super enfermeira que sabia tudo e o dia corria tão bem e noutros…corria tudo tão mal que nem as coisas básica adivinhava. Não sei o que se passa comigo, se é o cansaço ou que possa ser mas sinto-me a desanimar como as folhas que caem das árvores. 

Se sinto isto enquanto estudante, quando for enfermeira será igual? Sei que é uma das profissões mais desgastantes e com das taxas mais altas de síndrome de Burnout mas também é das mais belas profissões do mundo, como uma rosa florida e com seu cheiro incrível. Só que até à data só me deparo com os seus espinhos. 

Caminhava vagarosamente pelos corredores do hospital, depois de um turno de 12 horas. Estávamos a preparar para a passagem de turno, quando fui interpelada pela minha orientadora. 

- Hei, Clara pode chegar aqui? 

- Claro! – Prontifiquei-me a segui-la até ao gabinete de enfermagem. 

- Amanhã os nossos utentes serão diferentes porque vamos trabalhar na ala dos quartos impares. No entanto, quero retificar alguns pormenores. Reparei que a Clara estava com dificuldades na compreensão do caso clinico da D. Adelina. 

- Na utente que foi submetida à prótese total da anca? 

- Exato. A utente foi submetida à cirurgia há três meses e, apesar das suas dificuldades na marcha, o verdadeiro problema dela não é esse. Preciso que pense de uma forma holística e com pensamento critico tente entender quais serão as principais razões e diagnósticos da utente e que possam estar a impossibilitar de realizar treino de marcha. 

- Bem…- Mentalmente tentei ordenar as minhas ideias e pensar de forma clara. Eu sou capaz disso – Podemos ir pelos seus antecedentes pessoais que… - fui interrompida. 

- Quero que pense bem e reúna-me a sua opinião clinica num texto organizado, até amanha. pode ser? 

- Para amanhã? – sentia a minha garganta a queimar. Depois do dia de amanhã tinha o exame final, não podia queimar mais tempo pois precisava de estudar para a prova. 

- Sim. Eu sei que é capaz…Qualquer duvida tem o meu e-mail – senti a ficar sem chão. Quando falo que apanho os espinhos das rosas, era disto que falava. Olhei para o relógio. Eram quase oito da noite e ainda faltava meia hora para terminar o turno. Com sorte, estaria em casa por volta das nove horas da noite e entre jantar, tomar banho e preparar os estudos, talvez à meia-noite estaria a preparar este caso clinico. Ah! Sem esquecer que tinha de estudar para a prova final e que amanhã tenho mais um dia de estágio. Abanei a cabeça. Eu não me sento nada preparada para a minha profissão. 


Cheguei ao quarto depois de buscar o meu terceiro café desde que cheguei a casa. Eram onze horas da noite e dediquei uma hora de estudo, até ao momento, para a realização da prova. Estava com receio que o estudo de caso me fizesse perder o tempo e não conseguisse adiantar matéria. Okay…vamos lá. Reuni toda a informação clinica e fiz a avaliação inicial. Tinha tudo escrito por ordem. Estudei umas matérias a nível neurológico que pudesse justificar os atuais sintomas. Tinha tudo na mão mas porque é que eu não conseguia chegar a uma conclusão? Respirei fundo…tentei lembrar-me das passagens de turno e da informação dada pelos enfermeiros, anotei tudo direito. Mas…nada. Não conseguia pensar em mais nada e comecei a sentir os efeitos do excesso da cafeína. O meu coração batia fortemente. A minha cabeça estava a pesar e as pestanas já davam sinais de quererem fechar. Eram mais do que horas de dormir mas eu tenho um caso clinico para terminar para amanhã de manhã. Comecei a sentir-me exasperada e a dar sinais do cansaço acumulado. Num ato irrefletido, mando com o meu caderno contra a parede em sinal de toda a minha frustração. Odeio sentir isto. Que estou a falhar e não sou capaz de dar respostas que teriam de ser básicas. Daqui a uns meses vou ser enfermeira e não me sinto capaz de decifrar um caso clinico básico! Que raio de profissional serei eu? Uma idiota! Soltei um pequeno grito de lamúria. 

- está tudo bem? – uma voz receosa provinha do lado da porta. 

- O que foi? – ripostei ainda sem me aperceber de quem estava à porta, perante o desespero que sentia. Olhei de soslaio e bufei. 

- Acabaste de mandar, o quer que tenha sido, algo contra a parede e que por sinal é a mesma que a minha e que está encostada à minha cama. Vim só ver se está tudo bem. 

- Está tudo bem, não vês? Desculpa se incomodei! – ironizei. O Rafael ignorou o meu estado de espirito exaltado e entrou no quarto, fechando a porta. 

- Não dei permissão de entrares…- murmurei 

- Engraçado, tu também entras pelo meu quarto sem pedires licença – gracejou. 

- O que estás aqui a fazer? – Perguntei mais calma e a tentar esconder os meus tumultos. Só me faltava que ele percebesse as minhas fragilidades. 

- A tua prova final é daqui a dois dias, certo? – Ele ignorou a minha pergunta. Ao invés disso, chegou perto da minha secretária, sentando-se na borda da mesma. 

- Sim… 

- Estás com algum problema na matéria? – Ergui o sobrolho. De onde tinha vindo tanto interesse? 

- O problema não é a matéria. Eu estou preparada para o exame – menti. 

- Hum…estou a ver. Suponho que o problema de teres mandado algo para a parede se chama… - ele levanta-se e vai até junto da parede, do sitio onde se encontrava o meu caderno. Apanhou-o e começou a ler – neurologia? 

- Estou apenas com um pequeno bloqueio. 

- E para desbloqueares o teu problema, mandaste-o contra a parede? – gracejou. O momento não era para rir mas, lá no fundo, deixei escapar um sorriso tímido. Que raio! Porque estava com vontade de rir se, na verdade, só queria chorar? 

- Sim, mandei. Dizem que resulta! 

- Vou experimentar essa tática – refletiu – o teu problema chama-se Dona Adelina? 

- Desculpa? – ripostei de imediato. Com que raio ele sabia? 

- Antes que me insultes, estavas a falar dos teus casos clínicos ao telefone. E estavas na cozinha enquanto preparavas mais uma chávena de café. Eu estava na sala e ouvi. Não foi com intenção mas encontravas-te demasiado envolta da situação da tua utente que até os peixes do rio eram capazes de ouvir… - Cretino. Abanei a cabeça não sendo capaz de acreditar no que ele me dizia. Mas desta vez a culpa é minha. Enquanto esperava pelo meu café, falava ao telemóvel com uma colega na esperança de me ajudar e era verdade que o meu tom de voz não era baixo. 

- Desta vez tens razão. Mas só desta vez… - avisei-o. 

- Já paraste para pensar que o problema dela possa não ser propriamente ortopédico? – Olhei-o atentamente. O Rafael era apenas jogador de Hóquei, como podia ele saber alguma matéria de patologia? 

- Desde quando sabes disto? 

- Podes não estar a par mas eu estive um ano inscrito na faculdade, no curso de fisioterapia. Tive cadeiras de anatomia e fisiologia e mais alguma coisa… 

- Não acredito! – disse admirada 

- Queres uma opinião minha? 

- Bem…a uma hora destas da noite, sou toda a ouvidos. 

- Quais são os antecedentes clínicos da utente? 

- Hum… Hipertensão arterial, dislipidemia e cirurgia ao abdómen em Agosto deste ano e recentemente colocação de prótese da anca após queda. Apenas isso. 

- Antes da cirurgia ela fazia treino de marcha? 

.- Sim. Aliás mesmo depois da cirurgia da anca ela realizava fisioterapia e caminhava. Apresentava limitações que eram justificadas pelo facto de ter parado as sessões depois de ser operada ao abdómen. 

- Ela poderá estar a fazer compressão do nervo como consequência da cirurgia ao abdómen. Não é muito comum mas pode acontecer. Ela fez TAC ou ressonância? 

- Fez TAC à coluna, apenas…As dores lombares que tinha eram associadas ao desuso dos músculos. 

- Ou talvez não. Se ela fizer TAC lombar poderá ser detetado compressão do nervo e isso esteja a atrasar a sua recuperação da marcha. Não falaste que ela tinha problemas de demência para justificar um internamento em neurologia – Fiquei a pensar no que ele me falava. 

- Hum…faz sentido. E se não for isso? 

- Se não for…eu chamaria manhosice em não querer caminhar – Olhei para ele pensativa. A sua teoria fazia sentido e sinceramente não me ocorria mais nada diferente. Após escrever todas as hipóteses, já passava meia hora depois da meia-noite. Era hora de me render ao cansaço e não tardou muito para adormecer assim que pousei a cabeça na almofada. 




O dia estava péssimo. Chovia imenso e o caminho até ao hospital demorou o dobro do costume. Era mais uma das consequências de viver numa cidade como esta…em dias de chuva o caos estava instalado. A condução tornava-se mais vagarosa, o receio de conduzir era maior, a visibilidade tornava.se péssima e a paciência era algo raro nos condutores. Praguejei, para mim mesma, a opção dos transportes públicos quando tinha carro próprio mas depois refleti que o estacionamento no hospital era escasso e teria de deixar o carro bem longe da entrada principal. E, verdade seja dita, em dias de chuva sabia bem o conforto de ter o autocarro a parar à porta principal. 

O percurso era o mesmo. Deslocar-me até aos balneários, vestir a minha farda branca, pegar em todos os cadernos e apontamentos, lancheira, chegar ao elevador e carregar no segundo andar. Eram oito horas em ponto quando começamos a passagem de turno. Os estagiários estavam presentes e, como as cadeiras eram escassas, ficávamos em pé para dar lugar aos enfermeiros. Tudo bem…não me chateava com isso. Afinal só me estava a preparar para a minha futura retenção de líquidos. 

- Conseguiu encontrar a solução, Clara? – a voz calorosa da minha orientadora fez-me despertar dos pensamentos. Naquele momento tinha todas as atenções centradas em mim. Corei. Não gostava nada daquilo. 

- Sim, tenho – respirei fundo, peguei nas minhas anotações e clareei a voz. Eu era capaz – Após uma melhor análise, a utente não apresenta síndrome demencial e essa hipótese foi descartada pela equipa médica, ou seja, a diminuição da marcha não estará relacionada com parte neurológica. Da parte ortopédica encontra-se clinicamente estável e não existe deslocamento nem infeção da prótese. Como as queixas da utente resultam desde a altura da cirurgia ao abdómen, a causa poderá ser alguma compressão resultante da cirurgia, por exemplo, rompimento de algum nervo acidentalmente. 

- E como poderá comprovar que seja uma compressão? 

- Através da realização de uma TAC lombar – Um certo silencio se gerou e achei que tinha dito asneiras. E da grossa. Todo o meu corpo vacilou e só queria um buraco para me enfiar. Passei o restante turno a matutar no assunto e no quão idiota tinha sido. 

- Hei, Clara – a minha orientadora chamava-me. 

- Sim, Enfermeira Natália. 

- Parabéns. Falamos com a equipa médica e sugerimos a realização de uma TAC lombar e tinha razão. A utente estava a fazer compressão dos nervos por rompimento dos mesmos. Estará aí a causa da diminuição da marcha. Estou muito orgulhosa de si! Eu sabia que era capaz – Oh…Deus! Fiquei em choque. Virei costas e só queria saltar de felicidade. Eu tinha acertado. Não queria acreditar! 


Assim que cheguei a casa fui inundada pelas vozes calorosas da Madalena e do Duarte. Pousei a minha gabardine no bengaleiro e juntei-me a eles que se encontravam na sala. Encontravam-se a estudar e saudei-os. 

- Olá Clara! 

- Como está a correr o estudo? – Perguntei interessada. Sabia que era uma semana complicada com vários testes para ambos. 

- Estou farto de estudar Matemática – prontificou-se a responder o Duarte. Dos dois, sem dúvida que ele era o que menos gostava de estudar. 

- Sabes…Matemática era a disciplina que menos gostava. Mas apesar disso tinha de estudar na mesma pois sem matemática não entrava na faculdade. 

- Não vejo a hora de deixar de estudar – desabafou. 

- Vocês viram o Rafael? 

- Acho que está na cozinha a preparar os seus batidos nojentos – Desta vez foi a Madalena que respondeu. Despedi-me deles e dirigi-me à cozinha. Pela hora, sabia que a Olívia estaria envolta dos tachos e panelas a preparar o jantar. E, como sempre, o cheiro proveniente da cozinha era divinal. 

- Boa tarde – saudei-os. A Madalena tinha razão pois o Rafael estava junto à banca da cozinha a deitar um batido no copo. 

- Oh Menina Clara! Já chegou. – Saudou-me a Olívia. Rafael apenas me olhou – quer petiscar alguma coisa antes do jantar? 

- Agradeço mas não tenho fome. Eu vim até aqui para agradecer ao Rafael – Naquele instante captei toda a sua atenção. 

- A mim? – Ele parecia surpreso – isso é uma estreia – ironizou 

- Tinhas razão. Consegui com que fizessem uma TAC à utente e detetaram compressão dos nervos. Era essa a causa da dificuldade na marcha! – disse mostrando a minha felicidade. Seria egoísta se não a partilhasse com ele, afinal…foi graças a ele que consegui resolver este caso clinico. 

- Eu disse que tinha razão! – Gabou-se. Não era apenas o meu agradecimento que se tornava numa estreia mas como o sorriso que iluminou o seu rosto, se tratava de uma novidade. Pelo menos para mim, sendo que era a primeira vez que o via a sorrir daquele jeito. Tão solto. Olívia acompanhou-nos. Conseguia ver espanto no seu rosto. 

- Mas não fiques convencido – retorqui – Ficas apenas com um terço dos loiros. 

- Tu não és mesmo nada modesta. 

- Não te preocupes, eu pago-te um café como forma de agradecimento. 

- Só um café? Está a ver Olívia…eu salvo-lhe o couro e ela só me sabe agradecer com um café – ironizou. Olívia lançou um sorriso jovial. Sentia-a surpreendida – merecia, no mínimo, um jantar! 

- Levas um café e não te queixes – praguejei – Vou preparar-me para o jantar que já são horas… até já – despedi-me deles mas antes de sair da cozinha voltei-me para trás. Havia algo que precisava de dizer – Sabes, Rafael…deves pensar melhor na hipótese de continuares o teu curso de fisioterapia. Podes salvar o couro a mais pessoas e o Hóquei não é para a vida toda… - Não deixei que ele falasse, simplesmente sai da cozinha mas sem antes observar a surpresa espalhada no rosto de Olívia e a forma como levou a mão ao peito.

Sem comentários:

Enviar um comentário